Raimundo Serrão

Por Jeferson Garcia, membro da coordenação nacional do coletivo negro Minervino de Oliveira e militante do PCB-Maringá.

— “Eu vou lutar até o fim. Enquanto eu não conseguir o nosso território pra mim deixar a minha família colocada, eu não sossego”— Disse Raimundo Serrão à Global Witness.

Um vasto país, com dimensões continentais, é também berço das maiores concentrações de terra. Por aqui, desde a época de Zumbi dos Palmares, o solo tem dono e não somos nós. Trabalhadores são constantemente resgatados em cantos esquecidos, em situação de trabalho análogo à escravidão. Desde 1995, mais de 57 mil brasileiros foram resgatados nessa condição – segundo o IBGE.

No Pará, um homem retinto, chamado Raimundo Serrão, é fotografado em seu quarto. Líder quilombola, ele defende sua terra e sua história — retrata a fotojornalista Karina Iliescu Costa. Desviando da grilagem, do despejo e da ganância, esse homem busca enfrentar as empresas produtoras de óleo de Palma, que vivem de demolir a natureza para construir dinheiro, roubando até os territórios sagrados, antigos cemitérios tradicionais. Nem os mortos estão a salvo do capitalismo. Castelos de dendê são adubados e construídos sobre a memória dos enterrados. Repressão, sangue e massacre. Nesse chão onde a classe trabalhadora negra herdou da tradição escravizada o consumo desse óleo como alimento, assistimos à transformação dessa especiaria em veneno. Ele é mais causa de morte do que de vida. A terra é mais cemitério do que casa.

O que poderia ser alimento e renda, num país tão faminto e desnutrido, é sinônimo de miséria e de trabalho análogo à escravidão. As palmeiras de dendê, o dendezeiro, chegaram por aqui da costa ocidental da África por volta de 1540. O óleo extraído do coco, o fruto, é ingrediente típico da chamada cozinha baiana, da culinária afro-brasileira, desde os tempos das preparações da janta da sinhá. O dendê é utilizado no preparo de pratos como acarajé, caruru, bobó de camarão, vatapá, moqueca, dentre outros. Não fosse suficiente o seu valor cultural culinário, ele possui ainda grande importância para cerimônias de religiões afro-brasileiras, como o candomblé. É uma benção que se tornou maldição nas mãos de grandes empresas do setor.

Ironicamente, ele ainda cheira à grilhões. Para piorar, não há data para esse odor malcheiroso acabar, tendo em vista os bolsos enriquecidos com ele. Com o óleo de palma, vulgo dendê, além da gastronomia, se produzem também remédios, produtos de limpeza até e cosméticos para o mercado nacional e internacional. Além do Brasil, os grandes produtores são a Costa do Marfim, Nigéria, Gana, Indonésia, Malásia e Tailândia. África e àsia. Não à toa, países predominantemente negros, onde os grandes proprietários de terras são brancos, como aqui no Brasil, onde quase 80% dos grandes proprietários rurais com áreas acima de mil hectares são pessoas brancas, enquanto os negros e negras vivem com áreas de até 5 hectares. Menos de 1% (0,95%) dos estabelecimentos (aqueles com mais de 1000 hectares) concentram 47,5% da terra. Além de tudo, os alimentos produzidos, além de não serem diversificados, não são para calar o estômago dos brasileiros.

O sonho da monocultura de Palma é o pesadelo das comunidades tradicionais. Dela se alimentam grupos como a Danone, Ferrero, Hershey´s, Nestlé, Unilever (que detém as marcas OMO, Dove, Rexona, Hellmann's, Kibon, Axe, Clear, Close Up, Pepsodent, LUX, Seda, TRESemmé, Vasenol, Vinólia, Lifebuoy, Bed Head e Nexxus), dentre outras, que compram óleo de palma de fábricas violadoras de direitos humanos, como a BBF e a Agropalma, que dominam a Amazônia paraense. Ninguém é responsável e nem se culpabiliza, dizem apenas fazer negócios. O doce na boca da família assistindo televisão aos domingos nasce da tortura e tem sabor de um corpo indígena no chão.

Raimundo Serrão é apenas um dentre tantos quilombolas de Vila Gonçalves e Balsa, indígenas Turiuara e de Tomé-Açu, campesinos, ribeirinhos e moradores tradicionais que travam uma guerra diária contra as empresas produtoras de óleo de Palma no Pará. Todos esses vivem sussurrando palavras combativas e pedindo que o silêncio sobre eles acabe. A luta pelo direito à terra não é apenas para onde pisam, nem para o seu umbigo. Trata-se do direito de viverem como bem entenderem, com suas tradições, mantendo-se do que produzem, de viverem de acordo com as necessidades coletivas e tradicionais, algo que os empresários do setor de Palma nunca entenderão. Por isso, quilombolas, ribeirinhos e indígenas erguem barricadas contra à lógica de produção de alimentos baseada na mercadorização da vidaem que a própria terra, os alimentos e a casa são mercadorias. Nomes como Raimundo Serrão combatem a lógica da expropriação de tudo, até de sua memória. Nunca saberemos todos os nomes. Alguns deles são representados por Paratê Tembé, pelos indígenas Turiuara e pelo rio Acará. Mas o dendê conhece todos os nomes. A Agropalma também. E sabem que esses nomes irão lutar até o fim e, se preciso, farão palmares de novo. Não haverá sossego. A mão que colhe o fruto da palmeira também planta o fruto de Palmares.

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