Solano Trindade: de Exu a Marx


Por Jeferson Garcia - Militante do partido Comunista Brasileiro (PCB) e da coordenação Nacional do Coletivo Negro Minervino de Oliveira.

Em 1944, arrancaram o poeta de casa enquanto dava remédios ao seu filho. Torturaram, roubaram 39 cópias de seus livros. Repetiram a prisão em 46, 47 e 49. Em todas, a justificativa para a violência foi a mesma: o comunismo. Dutra mandou prender pessoas que divulgassem boletins subversivos contra a ditadura. Talvez tenha nascido aí a pecha de poesia panfletária brasileira. A poesia que fala da mulher negra, do trabalhador, do frevo, do maracatu, do samba é muto perigosa. Alguns dizem que Solano ele foi preso por causa do poema “tem gente com fome”, outros porque ele fazia parte de um grupo chamado “Sociedade dos amigos da América”, que apoiava um general contrário ao governo. São muitos os seus pecados, foi até diácono presbiteriano. Nunca sabemos onde o Diabo está. Poucas são as certezas, mas sabemos que nem só de poesia vive o poeta, há o fim do mês — como disse Solano Trindade em um de seus poemas.

 Solano II

As palavras começam, as palavras terminam, e é sempre manhã nos olhos da poeta. Compre as passagens, pegue um trem, sinta a viagem pelas palavras. Mas o trem não tem o mesmo significado para todos. Em um tempo de mercadorização da vida, ele estava certo: nem a lua é mais dos poetas. Não à toa, tinha as alcunhas de o poeta do povo, o poeta popular, o poeta negro.

O que posso te oferecer, enquanto conselho, é que leia a poesia insurgente e insubmissa deste homem chamado Francisco Solano Trindade (1908-1974). A poesia irá te mostrar um novo modo de voltar para casa, como quem te ensina a velejar, mas só se ouvir a voz dos que embarcaram contigo. Sim, precisamos aprender a escutar, tocar e saborear um poema e toda essa gente com fome, que tem algo a dizer. É preciso visitar esse lugar onde os trabalhadores quebram os olhos pelas janelas e suspiram ao verem a parada mais linda do dia, nas curvas do corpo que se deseja. Em Solano, os passageiros se chocam, como rochas em um desmoronamento, causando tremores nos apaixonados, que aprendem que um trem não tem asas, mas ainda assim nos leva ao céu da nossa casa. Não à toa, sua poesia não é língua cifrada, ela se senta e brinca com a gente no chão da sala. Tem no negro o ritmo, no povo as obsessões e nas mulheres o amor. Talvez seja em Solano a primeira vez que a palavra fascismo aparece na poesia brasileira. Fascismo, maracatu, analfabetismo, todos os temas que vem na caneta desse vento forte que vem da África.

O livro é lugar de poesia e, portanto, de memória. Como o sol, que carrega o privilégio de tocar a pele da grande paixão de alguém, é direito do poeta ressuscitar na ponta de sua caneta os velhos amores, as cidades, o folclore. Gravata colorida, Trem sujo da Leopoldina, advertência. O homem que encerrou sua vida com colesterol alto e paralítico, escrevia como quem tira poeira das estrelas, transformando o trem em mar, às vezes em nuvem, às vezes em chuva que reinventa o trajeto e cai na janela mais próxima, entre as pernas das mulheres negras, ronronando como um gato. Se tem gente com fome, dá de comer, oras. O obvio sendo dito sempre. São inúmeras as fomes, não somente as do estômago. Abra os olhos e ouça o barulho do vento entrar pela janela do trem sujo da Leopoldina. Diferente dos românticos bucólicos que morreram tuberculosos, Solano é o poeta levado pela pneumonia, mas sabe que o que mais mata é a sociedade de classes.

 Solano III

Em 1936, escreveu Poemas negros, em oposição ao escrito “Nega Fulô”, de Jorge Lima. Nessa época fundou a Frente Negra Pernambucana. Depois passou por Belo Horizonte e Pelotas, no Rio Grande do Sul. Em 1944, já em Caxias, o poeta negro escreveu Poemas d’uma vida simples. Nos anos 50 fundou o Teatro Popular Brasileiro, com sua companheira Margarida e com Edson Carneiro.  Passou por São Paulo e pela Polônia (Varsóvia), em 1955, levando o teatro e as danças folclóricas.

Dizia ser um homem das danças, da música da escultura, pintura, poesia e das manifestações folclóricas (termo que usava). Em 1958 escreveu Seis tempos de poesia e em 1961 escreveu Cantares ao meu povo.

Hoje me sentei para tomar café e os poemas simplesmente começaram, os poemas terminaram, e não foi tarde para embarcar pela palavra. Não era o trem sujo da Leopoldina, mas os operários ainda estavam com sono e fome. Ainda assim, embarquei porque era preciso. Ancorei a língua, rocei o veleiro, como diz o poeta. Sonhei com dengo. Segui Solano pelas esquinas onde a luz ilumina as cabeças com o vazio das janelas. Ouvi sua voz na Boca de Ney Mato Grosso. Uma amiga me disse que seu primeiro poema musicalizado foi “Mulher barriguda”, escrito para Margarida e seu filho Liberto. Hoje a memória me visitou vestida de Solano.

Trabalhou para o IBGE, fazendo recenseamento. Andou por aí coletando o mundo, pessoas e histórias, as ruas e bairros, arranha céus e casas simples, os desafios, a necessidade de saneamento, discriminação e a ausência de justiça nos bancos escolares. Rendeu culto à beleza e aos pequenos momentos, aos casais se beijando e os que nunca se beijaram.

Foi de Exu a Marx, como disse Roger Bastide. Solano foi preso em 1944 por denunciar o mundo – e como o mar aos pescadores – deu o que comer aos nossos sonhos. Foi denunciado por um militante negro, um médico, que era amigo de Abdias do Nascimento. Escreveu que nem todos os negros são seus irmãos, quase que um “abre o olho, Abdias”. Foi torturado: “fecharam minha boca/ mas deixaram abertos meus olhos”.

 Solano IV

 Hoje, sonhei.  Vi um trem sujo deslizando, com pressa, no dorso da cidade, na terra dos ninguéns. Não era o bairro de São José em Recife, Embu ou Duque de Caxias. Por aqui muitos são filhos de sapateiros e de quituteiras, tal como Solano. Nem todos foram amigos de Edison Carneiro. Nem todos tiveram quatro filhos. É muito difícil perder o amor, ver a baleia bater o rabo pela última vez. Você conhece o peso de uma cadeira vazia? Solano deixou uma. Conhece o cheiro da ausência? Você verá tudo isso se prestar atenção no que está do outro lado da janela desse trem sujo, desse mundo miserável. Certa vez, Margarida, esposa de Solano, avisou que seus filhos não poderiam ir ao cinema porque somente um deles tinha calçado. Solano prontamente pediu que um irmão dividisse com o outro e, assim, foram ao cinema cada um com um pé do tênis e o outro roçando o chão.

— Ora, meu bem. Basta que o menino sofra por ser pobre, ainda vamos castigá-lo por isso, impedindo-o de ir ao cinema? — disse o poeta negro e pobre.

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