STF legitima enquadro e invasão de domicílio por GCMs e reforça policialização

STF legitima enquadro e invasão de domicílio por GCMs e reforça policialização

Por: O Poder Popular · Guarda civil metropolitano revista pessoa na Rua Helvétia, centro da capital paulista, em mais uma fase da “Operação Caronte”, em 2022 | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

Jeniffer Mendonça para o Ponte Jornalismo

Primeira Turma considerou legítimo caso de guardas que invadiram residência de homem preso em flagrante por tráfico de drogas: especialistas consideram decisão “ilegal”, “populista” e que amplia poderes da corporação


Por maioria de votos, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu, nesta terça-feira (1/10), que não é ilegal a guarda municipal prender uma pessoa por tráfico de drogas a partir de uma revista pessoal por “fundada suspeita” e busca domiciliar após uma abordagem. Especialistas ouvidos pela Ponte consideram a decisão “populista”, que chancela uma abordagem “ilegal” e fortalece a descaracterização das funções das guardas para se aproximarem do modelo das polícias estaduais.

Os ministros avaliaram o caso de um homem de 31 anos que foi abordado pela guarda municipal de Embu-Guaçú, na Grande São Paulo, em julho de 2022. Os agentes disseram que estavam em patrulhamento quando um indivíduo “demonstrou medo ao avistar a viatura” e jogou para o lado uma sacola. Esse homem — que vamos chamar de Carlos — foi revistado pelos guardas, mas não tinha nenhum objeto de crime consigo. Os agentes afirmaram, no entanto, que no interior da sacola havia “certa quantidade de entorpecentes embaladas de forma unitárias e para venda” e que Carlos teria confessado, informalmente, vender drogas.

Perguntado pelos GCMs sobre a posse de mais entorpecentes, o homem os teria levado até sua casa, onde foram apreendidos 465,2 gramas de cocaína, 1,3 kg de maconha, 98,2 gramas de crack e 369 ml de thinner. Carlos foi preso em flagrante por tráfico de drogas, tendo a prisão convertida em preventiva (por tempo indeterminado) e virou réu pelo crime.

Em novembro daquele ano, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou a liberdade de Carlos, em caráter de urgência, para que ele respondesse a acusação em liberdade, após uma solicitação da defesa. Posteriormente, no julgamento do mérito desse pedido pelo colegiado (grupo de ministros), o STJ anulou as provas da prisão, determinando o trancamento do processo. A Ponte reportou, em outras ocasiões, que a corte determinara que guardas civis não tinham poder de polícia e não podiam dar enquadros.

‘Ilicitude das provas’

O relator do recurso no tribunal, ministro Sebastião Reis, argumentou que a prisão foi ilegal pois os guardas fizeram uma abordagem que não tinha relação com a proteção de bens, serviços e instalações do município, conforme prevê a Constituição, e que só conseguiram realizar o “flagrante” porque estenderam a revista para a casa de Carlos — o que não poderia ter sido feito.

“Assim, na espécie, porque a situação de flagrante delito só foi descoberta após a realização de diligências ostensivas e investigativas típicas da atividade policial e completamente alheias às atribuições da guarda municipal, deve ser reconhecida a ilicitude das provas colhidas com base nessas medidas e de todas as que delas derivaram”, escreveu Reis na decisão.

O Ministério Público de São Paulo (MPSP) recorreu ao STF e, em fevereiro do ano passado, o ministro Alexandre de Moraes — que foi Promotor de Justiça de 1991 até 2002 —, reverteu, em decisão monocrática, o acórdão do STJ, mantendo a continuidade do processo. Com isso, a defesa de Carlos impetrou na Corte um recurso para anular as provas no sentido do que já havia determinado o STJ. É esse recurso que teve julgamento nesta semana pela Primeira Turma.

Moraes, que é relator da ação, argumentou que as guardas municipais foram reconhecidas como integrantes do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), ratificado pela Corte em 2023 na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 995. E afirmou que, diferentemente das polícias estaduais que têm dever de prender em flagrante, as guardas não são obrigadas, mas também não estão proibidas — assim como qualquer pessoa pode dar voz de prisão em uma situação de flagrante.

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O ministro sustentou que a jurisprudência dos tribunais superiores tem legitimado buscas domiciliares por policiais, mesmo sem o consentimento do morador ou ordem judicial, se o crime for de natureza permanente, ou seja, que se prolonga no tempo. Disse, ainda, que o STF tem proferido decisões que autorizam ingresso domiciliar em caso de flagrante delito, desde que com fundadas razões para tal. Para ele, a guarda não agiu de forma investigativa.

Os ministros Carmen Lúcia, Flavio Dino e Luiz Fux seguiram o entendimento de Moraes. Já Cristiano Zanin foi o único contrário a esse entendimento, por entender que as GCMs fazem parte do SUSP, mas “isso não significa que as guardas municipais têm o poder irrestrito de policiamento ostensivo e investigativo, que lhes autorizaria a realizar indistintamente atividade exercida, por exemplo, pela PM ou pela Polícia Civil”, como realizar enquadros por fundada suspeita.

O ministro Zanin defendeu que as guardas só poderiam prender em flagrante delito, o que não teria ocorrido nesse caso. Para ele, os agentes fizeram uma diligência ilícita pois não lhes caberiam ir à casa da pessoa verificar se havia drogas — algo que é de atribuição da Polícia Civil, e deveriam ter acionado a polícia no local.

Desacordo com a Constituinte

O entendimento de Zanin e do STJ é compartilhado por três especialistas entrevistados pela Ponte: Maíra Zapater, professora de direito penal na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Eduardo Samoel Fonseca, advogado e professor de direito penal e de processo penal nas Faculdades Integradas de Guarulhos (FIG), e Alberto Kopittke, que é diretor-executivo do Instituto Cidade Segura e foi secretário municipal de Segurança Pública e Cidadania em Canoas, no Rio Grande do Sul.

Maíra destaca que essa disputa de compreensão de competência das guardas é reflexo também da ausência de delimitações claras do trabalho das polícias, já que, por exemplo, existem disputas até entre as polícias Civil e Militar sobre atribuições de investigação. “A gente tem como regra do direito administrativo, do Código Tributário nacional, o que é o poder de polícia, de forma bastante genérica, que é o poder do Estado de restringir direitos dos cidadãos. Só que esse poder de polícia inclui até a vigilância sanitária quando ela interdita um estabelecimento que não tem condições de funcionar”, diz.

“Quando a gente fala dos poderes das polícias, que é o uso da força, de coerção, a gente não tem previsões claras porque o nosso Código de Processo Penal é de 1940, feito na ditadura do Estado Novo, e tinha um mínimo de limitações ao poder dos policiais. Mas isso entra em desacordo com o que se pretendia na constituinte em 1988”, sustenta.

“Hoje a gente consegue entender, em termos históricos e culturais, por que esse poder não é regulamentado, por que a polícia acaba sendo violenta e por que decisões do Supremo ampliam o poder das guardas, a meu ver, de forma inadequada e inconstitucional”, avalia a professora de direito penal.

Ela entende que as guardas têm papel na segurança pública, mas não o de fazer enquadros e de ingressar na casa das pessoas para averiguar existência de drogas.

Se qualquer pessoa não pode invadir a residência alheia para isso, as guardas, que são funcionários públicos, também não podem pelo princípio de inviolabilidade do domicílio, sinaliza Eduardo Fonseca. “O que o ministro fez, equivocadamente, foi dar salvo conduto para que todos os policiais e guardas ingressem em residência de agora em diante”, alerta o advogado e professor.

Maíra e Eduardo também consideram um perigo enquadrar o tráfico de drogas como um crime de flagrante permanente para ingressar em domicílio. Crime permanente é o que se prolonga no tempo. Por exemplo, se uma pessoa é sequestrada e a polícia ainda está tentando localizá-la e libertá-la — ou seja, o crime continua em estado de flagrância permanente até que ela seja encontrada. Nesse caso, a polícia não precisa de uma ordem judicial para invadir o cativeiro, libertar a vítima e prender o criminoso caso ele esteja no local.

“Tem muitas decisões do judiciário que se aproveitam dessa interpretação para validar invasões de domicílio, prisões em flagrante, sem sequer saber se tinha de fato drogas no local”, aponta Maíra. “Isso nos mostra que existe um abuso dessa interpretação e agora uma nova camada da possibilidade desse abuso se estender para a guarda municipal.”

Confissão informal?

Ainda que supostamente tenha ocorrido uma confissão informal, esta é passível de contestação pois, neste caso julgado pelo STF, o homem não formalizou na delegacia o que teria sido dito segundo os guardas. Carlos inclusive relatou ter sido agredido na abordagem e um exame constatou escoriações no rosto — mesmo assim o juiz na audiência de custódia não entendeu ter havido abuso.

Uma investigação para apurar se houve violência pelos guardas na abordagem só foi determinada pelo tribunal paulista em junho deste ano, dois anos depois do enquadro, quando o homem foi condenado a mais de seis anos de prisão por tráfico de drogas.

Eduardo explica que a guarda fez “uma atividade de investigação”, pois primeiro foi averiguar se tinha drogas na residência do acusado — e não ao se deparar com uma situação imediata. Para ele, se os guardas abordaram o homem com drogas, o correto seria acionar a polícia e preservar o local. Ele entende que o STF, com essa decisão, quis combater a falsa ideia de que “a polícia prende e a justiça solta”.”A gente não pode responder a partir de impulsos populistas”, critica. “A gente precisa responder a partir do que diz a Constituição, a partir do que diz o nosso modelo democrático de direito. E o nosso modelo democrático de direito é feito de limites. Os limites são as nossas garantias constitucionais individuais e elas só são flexibilizadas mediante um argumento forte, concreto e delimitado por lei”, diz.

Para Maíra, “essa decisão comunica à sociedade um STF mostrando um posicionamento de olhar o processo penal como um instrumento de combate à criminalidade o que, na minha leitura, é equivocado”. E explica: “O processo penal é para proteger a liberdade do acusado, na linha que o STJ fez e que o STF acaba de derrubar. O senso comum pode ficar agradado com isso, parece que o Supremo está participando do combate à criminalidade, mas está usando um recurso que não é adequado.”

Os especialistas ressaltam que a decisão do STF não é vinculante, ou seja, os tribunais não são obrigados a aplicar esse entendimento em outros casos — mas fortalece uma jurisprudência que vai continuar gerando choques de decisões judiciais.

Para Alberto Kopittke, do Instituto Cidade Segura, a omissão do governo federal tem deixado nas mãos do judiciário a regularização das ações das guardas e gerado embates entre os tribunais. “O que o Supremo está dizendo basicamente é que temos uma nova polícia, porque se pode fazer busca pessoal, então não tem mais diferença. O que está sendo feito diante disso?”, questiona.

“O governo federal é o órgão central do SUSP e não está enfrentando esse tema”, pontua Alberto. “Nós nunca tivemos uma escola nacional de guardas, não temos um órgão central de fiscalização, procedimentos de atuação e, enquanto isso, o Congresso está com o projeto que já considera as guardas polícia municipal. O governo está pronto para isso?”

Na opinião do diretor-executivo do instituto, a falta de debate e iniciativa prática do executivo federal acaba reforçando modelos de guardas que reproduzem o que as polícias fazem, como a Ponte mostrou em reportagem especial sobre a militarização das GCMs.

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