Um olhar classista sobre o Setembro Amarelo: o indivíduo e a vida cotidiana na sociedade capitalista
Escrito por Igor Barreto - Militante do Movimento por uma Universidade Popular e do PCB em Goiás.
Convencionou-se dizer que a depressão é o mal do século XXI. Com cerca de 300 milhões de casos no mundo, segundo informações da Organização Mundial da Saúde (OMS), a depressão é um transtorno comum, com maior ocorrência entre as mulheres, sendo a doença que mais causa incapacidade no mundo e que, no pior dos casos, pode resultar em suicídio.
A campanha Setembro Amarelo, adotada no Brasil desde 2013, busca sensibilizar e informar a população sobre o suicídio. Neste ano, o tema da campanha é “Se precisar, peça ajuda!”. Ao final deste mês de campanha, nota-se pouco espaço para reflexão acerca de determinantes – presentes em todas as latitudes territoriais e em todas as dimensões humanas – que ampliam processos depressivos, perenizam suas manifestações, multiplicam sequelas e redundam, consequentemente, em um número crescente de suicídios. Em vista disso, é fundamental abordar a questão da depressão de forma não apartada do capitalismo, da sua era neoliberal e da sua crise.
Essa reflexão está diretamente atravessada por uma análise da vida cotidiana, que carrega consigo prazeres, mas também muitas dores que, à medida que o tempo passa, são internalizadas como parte disso que chamamos viver.
Na infância, quando estamos no nosso processo de formação como seres humanos, constantemente temos de lidar com situações adversas, muitas vezes impostas por uma figura de autoridade, ao mesmo tempo em que estamos conhecendo o mundo onde vivemos. Não raramente essas “adversidades”, que podem ir desde um isolamento causado por superproteção dos pais/tutores até o extremo da violência física e sexual, se transformam em traumas que nos acompanharão até que haja um processo de elaboração e superação desse passado.
No entanto, em vez de um acompanhamento profissional, é mais comum que passemos à próxima fase da vida sem encarar o que nos causa dor. A adolescência chega cheia de intensas emoções. Temos de lidar com as mudanças no nosso corpo e a descoberta da sexualidade, a transição entre a infância e a vida adulta – que para a classe trabalhadora muitas vezes significa passar a ter responsabilidade pela sobrevivência da família – e, ainda, mas não apenas, a responsabilidade de “decidir” sobre o nosso futuro.
O fato de que um em cada cinco jovens brasileiros não trabalha nem estuda, segundo o IBGE, demonstra que a tomada de decisão sobre o próprio futuro não é possível para uma parcela significativa da nossa população. Pelo contrário, a mesma pesquisa demonstra que a grande maioria desses jovens, chamados pela imprensa burguesa de geração nem-nem (não estudam nem trabalham), deixaram seus estudos em busca de trabalho e permaneceram desempregados. Em outras palavras, o que é apresentado pela burguesia como escolha do jovem (parar de estudar para trabalhar) é, na verdade, uma imposição de atendimento às necessidades básicas, que por sua vez não são atendidas a contento devido a uma série de fatores que resultam no desemprego.
Diante da impossibilidade de esconder essas informações, a imprensa burguesa e outros aparelhos privados de hegemonia nos reforçam, desde a infância (e cada vez começando mais cedo), que o desemprego é algo normal e até desejável e que o problema da empregabilidade é a falta de mão de obra qualificada. Assim, avançamos num ambiente em que a ideologia nos convence de que o desemprego, quando visto como um problema, é culpa de cada pessoa que não alcançou as exigências necessárias, entre as quais geralmente se incluem disposição total de tempo, formação na área, longa experiência, pouca idade e disposição para trabalhar mais e receber menos que o piso definido para a categoria.
A cínica resposta do Estado brasileiro a esse problema foi a elaboração de uma reforma do ensino médio que joga sobre jovens de 14 e 15 anos a responsabilidade de escolher qual será o caminho de sua vida, por meio dos itinerários formativos. Isso é o que diz quem defende a reforma. E, para o objetivo deste texto, basta parar aqui para apontar a responsabilidade do nosso Estado no aumento do risco de desenvolvimento de transtornos decorrentes da insegurança e do peso de uma escolha tão séria prematuramente. Para este texto, exclusivamente, não vale a pena entrar no fato de que esse Novo Ensino Médio é inexequível no Brasil atual, especialmente num contexto de limitação cada vez maior de gastos públicos.
Do outro lado, no qual se encontram os jovens que estudam ou trabalham ou ainda estudam e trabalham, a realidade não se vê muito melhor. Com 70% dos brasileiros recebendo até dois salários mínimos, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, o resultado da precarização das condições de trabalho e das políticas de salário faz com que o próprio trabalho seja fonte de sofrimento.
Para quem consegue acessar o ensino superior antes do mundo do trabalho, é imposto o confronto diário com a escolha de curso que fez, com a obrigação de ter sucesso na vida, com os poucos exemplos de “sucesso profissional”, repetidos ano após ano, com a obrigação tácita (e muitas vezes explícita) de concluir o curso e ter seu diploma.
Uma vez formados, só nos resta o mundo do trabalho, onde nos deparamos com ambientes verdadeiramente hostis, em que colegas são colocados uns contra os outros, criando um clima de animosidade entre trabalhadoras e trabalhadores e garantindo, assim, que estes não se organizem em prol daquilo que seria o interesse da classe.
Para além das relações interpessoais, a divisão e a organização do trabalho se tornam direta ou indiretamente fontes de sofrimento. O controle sobre diversos aspectos da vida da trabalhadora e do trabalhador, por meio de pontos eletrônicos, câmeras e até mesmo acesso aos seus smartphones; os salários sempre inferiores ao piso salarial, fazendo algumas pessoas terem que buscar um segundo emprego ou um “complemento da renda”; as jornadas de trabalho cada vez mais longas com o uso de banco de horas conforme a vontade da empresa em vez de pagamento de horas extras, estes são apenas três aspectos da realidade com a qual nos deparamos no mundo do trabalho.
Ao seguir todo esse processo de formação e inserção no mundo do trabalho, não é de se estranhar que alguém olhe e pense que nada valeu ou vale a pena, que não existe uma possibilidade de uma vida boa, seja lá o que isso signifique para essa pessoa. Esse sentimento está contido na nossa cultura, no que ficou conhecido como realismo capitalista – pensamento que entende o capitalismo como um mal, mas é incapaz de ver uma superação desse mal.
É de se supor que tamanho sofrimento pode provocar o desenvolvimento de transtornos de ansiedade e depressão. Esses transtornos, via de regra, são de fácil tratamento no sentido de que são muitos os meios e as formas para tratá-los, desde terapias a intervenções medicamentosas. No entanto, a realidade material se impõe novamente. O SUS, a cada ano que passa, é mais desfinanciado. A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) é ainda mais subfinanciada, sendo colocada de lado, enquanto comunidades terapêuticas passam a receber mais dinheiro público. Os baixos salários impossibilitam que trabalhadoras e trabalhadores empreguem mais de 10% de sua renda em terapias ou em remédios, o que comprova a OMS ao informar que menos da metade das pessoas com depressão no mundo faz o tratamento adequado. Momentos de lazer, esportivos e culturais com amigos e familiares, que poderiam ser vistos como formas de prevenção, são raros, seja por falta de tempo ou de dinheiro, seja pela ausência de disposição física.
O indivíduo na sociedade capitalista já caminhava para o isolamento, quando veio a pandemia. Diante das imposições da maior pandemia em cem anos, a burguesia passou a boiada, como disse um representante dela mesma. As relações interpessoais, bem como as organizações populares foram ainda mais desincentivadas ou transferidas para um meio virtual, no qual a hostilidade se mostra como regra.
Tudo isso evidencia que a forma de socialização e de divisão do trabalho capitalista nos trouxe a um estágio em que o adoecimento mental se propagou como uma pandemia do próprio sistema capitalista. Devemos, portanto, lutar por transformações estruturais em nossa sociedade, superando desigualdades sistêmicas e ordenamentos sociais baseados na meritocracia e na competitividade e proporcionando um contexto social favorável à justiça, à igualdade e à saúde plena.
Como vanguarda do movimento popular, a militância comunista deve estar constantemente atenta à sua própria saúde integral, bem como ser solidária com a dor do camarada ao lado. Devemos nos alimentar da melhor forma possível, fazer atividade física e procurar ajuda, quando necessário. Ao mesmo tempo, cabe a nós lutar por melhores condições de trabalho, por uma jornada de 30h semanais, por mais creches, pela divisão do trabalho doméstico, pelo tratamento adequado e integral nos procedimentos de mudança de sexo pelo SUS, pelo financiamento da RAPS, pela descriminalização do aborto, pela descriminalização das drogas, pela revogação do Novo Ensino Médio, pelo fim da carestia e do desemprego. Enfim, a nós, enquanto saudáveis, cabe a luta pelo fim de todo o sistema que nos adoece e a solidariedade àqueles já adoecidos.
Pelo Poder Popular!
Somos e seremos comunistas!
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