101 anos do PCB: a história de uma placa

101 anos do PCB: a história de uma placa

Por: O Poder Popular ·

Por Mauricio Leandro Osorio no portal Opera Mundi -  jornalista e escritor cubano-chileno

Introdução

Conversei com o chileno Maurício Leandro em simpática reunião virtual intermediada pelo camarada Caio Andrade, que o acompanhou numa visita recente à sede nacional do PCB, no Rio de Janeiro, quando esse militante do PC chileno se encantou com a história da placa localizada à entrada da sede e que ilustra seu texto abaixo transcrito.

Inspirado na ação política que recuperou as letras e símbolos metálicos que compõem a placa, Maurício Leandro se valeu de licença poética e de seu talento literário para narrar o episódio.

A divulgação desse texto suscitou o encontro em breve de 5 camaradas que participamos do resgate de símbolos do PCB que estavam em mãos dos que, naquele momento, tentavam matar e sepultar o partido.

Ivan Pinheiro

Espremidos no banco de trás de um táxi, três homens sofriam amassando uns aos outros naquela manhã quente de verão carioca. Desceram no lugar combinado, em frente ao enorme prédio da Avenida Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Mal sentiram as lânguidas brisas de ar que não lhes ocultava a transpiração durante a recente viagem, o gotejar do suor em seus rostos, o embaçado das lentes de seus óculos. Vestiam camisas formais de mangas compridas, sem blazer mas combinando com as calças sociais, um conjunto que revelava sua verdadeira identidade.

Contudo, a pergunta era, o que fazia aquele grupo de comunistas às cinco da manhã naquela esquina? E por que aqueles se aproximaram de três jovens que pareciam surgir do nada, em pleno alvorecer?

Eram primeiros dias de janeiro de 1992 e aquelas seis pessoas pertenciam ao Partido Comunista Brasileiro. Os mais novos pertenciam à União da Juventude Comunista (UJC). Os que chegaram em táxi eram militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e ligados também ao Sindicato dos Bancários.

Tudo foi coordenado com o porteiro do prédio [“um amigo do partido”], e com aquele grupo de bancários comunistas, que havia preparado um assalto à sede do Comitê Central do Rio de Janeiro daquele que até então era seu próprio partido. Eles tinham as ferramentas necessárias: martelos, pé de cabra, caixas e bolsas. A missão: resgatar a placa histórica da sede do partido mais antigo do Brasil

O único temor era que pudessem se encontrar com representantes do setor que detinha o poder no PCB, pessoas da ala liderada por Roberto Freire, então presidente da legenda.

Freire havia assumido o PCB e implantado um discurso eurocomunista, levando o partido a fazer alianças com velhos burocratas e a se alinhar a tese do “fim da História” a partir da queda da União Soviética. Para ele, o PCB deveria se transformar em uma nova organização, com novo nome e uma nova identidade, que tentasse preservar o patrimônio e a história do partido fundado em 1922, mas deixando de ser uma organização revolucionária de natureza marxista-leninista.

O espúrio Congresso de 1992

A ruptura já estava desencadeada. O próprio Roberto Freire se encarregou de preparar o terreno antes mesmo de levar a proposta de dissolução à direção do partido, quando foi ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial e registrou a sigla “PCB”,  o nome “Partido Comunista Brasileiro” e até seu antigo e histórico apelido: “Partidão”, como quem compra o nome fantasia de uma marca de refrigerantes.

O PCB nasceu em 25 de março de 1922. Era o Partido Comunista do Brasil – Seção Brasileira da Internacional Comunista, uma organização sofreu perseguições, proscrições e cisões internas em diversas ocasiões durante sua existência. Talvez a ruptura mais conhecida tenha sido a ocorrida em 1962, com a saída de uma facção que acabou adotando o nome de Partido Comunista do Brasil (PCdoB), partido mais voltado à proposta maoísta, que renegou a desestalinização proposta por Nikita Khrushchev na União Soviética.

O PCdoB é atualmente a organização com o nome “comunista” com maior número de militantes no Brasil, teve forte presença no governo de Dilma Roussef, nos dois primeiros mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, e também neste terceiro, no qual é representada pela ministra da Ciência, Tecnologia, Luciana Santos.

O PCB, por outro lado, seguiu a linha de Moscou. Depois da cisão, o Partidão teve que enfrentar um período difícil em termos de luta interna e externa, agravado pelo golpe contra João Goulart em 1964 e a ditadura que se seguiu.

Em meio a um período em que seus militantes eram assassinados, torturados e desaparecidos, a organização, em estado de choque, se recusava a optar pela via armada, como havia proposto um dos seus mais destacados militantes: Carlos Marighella, que acabaria expulso da legenda e a Ação Libertadora Nacional, em 1967. Esse mesmo líder acabaria assassinado em 1969, como noticiou a capa do jornal Última Hora, com uma manchete que o declarava como “inimigo público número um” da Ditadura Militar.

Entre as figuras internacionais mais conhecidas do comunismo brasileiro, estão o histórico secretário-geral Luis Carlos Prestes, famoso por sua luta na Coluna Prestes, o célebre escritor Jorge Amado, autor de clássicos como “Capitães de Areia”, “tenda dos Milagres” e muitos outros, e também o arquiteto Oscar Niemayer, que desenhou Brasília e outras maravilhas construídas e diversos países do mundo.

A organização manteve uma posição moderada até o final dos Anos 80, “quando o Muro de Berlim caiu também na cabeça do PCB”, como descreve Ivan Pinheiro, um dos mais importantes quadros do partido na atualidade.

O PCB como tal conseguiu sobreviver ao seu nono congresso, realizado entre maio e junho de 1991, onde a identidade da organização foi reafirmada. Mas com o desaparecimento do Partido Comunista Italiano naquele mesmo ano e o fim da União Soviética, foi convocado um congresso extraordinário, que aconteceria em Brasília [onde ficava a sede da organização], no início de 1992, com a única agenda de discutir uma nova forma partidária.

O resgate da placa

Ivan Pinheiro nasceu no Rio de Janeiro, onde mora até hoje. Foi ele quem liderou o grupo de bancários e jovens comunistas que decidiu invadir de madrugada a sede do Comitê Central do PCB em sua cidade natal. Pinheiro também era membro da direção nacional do partido, e descobriu que o congresso extraordinário convocado por Freire era uma fraude, já que os chamados “fóruns socialistas” tinham o direito de eleger delegados para o congresso [vários deles não eram militantes do PCB e alguns inclusive militavam em outros partidos].

Como reação a essa manobra, comunistas de diversos estados [entre eles Ivan Pinheiro] constituíram o Movimento Nacional em Defesa do PCB e lançaram um jornal pelo qual convocaram uma plenária nacional, a qual foi realizada em dezembro de 1991. A partir dali, decidiram formar um partido provisório, cujo presidente honorário era o arquiteto Oscar Niemayer.

“Se eles não gostam do Partido Comunista, podem sair e criar seu próprio partido, mas não podem vir e apagar a história do PCB. Aqui tem gente que foi torturada, morta e desaparecida” conta Ivan Pinheiro em relato exclusivo. Tanto ele quanto os que o acompanharam naquela ação de resgate da placa ação sabiam que a maioria dos delegados do congresso que decidiria o futuro da organização eram pessoas que estavam comprometidas com os interesses de Roberto Freire.

O primeiro obstáculo da operação foi o zelador, que se assustou ao ver seis pessoas no corredor ainda de madrugada.

– Por que tantos vieram?

– Não se preocupe, companheiro, vamos fazer isso rápido. Você sabe se há pessoas no escritório?

– Desde que comecei meu turno, ninguém entrou ou saiu. Mas por favor, seja lá o que forem fazer, façam logo.

Em frente à porta principal do Comitê Central, e antes de usar a cópia da chave que tinha, o bancário comunista encostou o ouvido na porta pensando que ouviria os roncos de um camarada de plantão. A perceber o som de um rádio, Pinheiro gesticulou para que seus companheiros se preparassem para a ação.

Quando abriu a porta, não havia ninguém, um rádio baixo estava ligado e a sede do Comitê Central no Rio de Janeiro naquela manhã não tinha guarda. Então, sem mais hesitação, a operação começou.

A placa não era o único objetivo. A primeira tarefa da equipe foi buscar os documentos históricos. Também foram recuperadas algumas obras de arte doadas por camaradas da União Soviética, com estatuetas de Lenin e de Marx com seus nomes escritos em cirílico. Quando terminaram, enfrentaram o desafio principal: retirar a gigantesca placa de madeira com letras de metal com o nome do Partido Comunista Brasileiro e o símbolo da foice e do martelo. Usando o pé de cabra e outras ferramentas, eles retiraram as letras e o símbolo do partido, um por um.

Partido Comunista Brasileiro - 'Insistir após a derrota é a dialética de todo movimento emancipatório', é a verdadeira mensagem que a história escreveu na placa do PCB

A “renovação” eurocomunista

Quatro anos foram suficientes para que Roberto Freire se tornasse o chefe do PCB. Naquela organização que, no início dos Anos 90, era marcada por um pragmatismo eleitoreiro e uma reticência em apoiar as greves sindicais, não era estranho que uma figura como Freire se alçasse como líder com plenos poderes.

Personagem cujo maior mérito até então [se não o único] estava relacionado à sua trajetória eleitoral e legislativa, mas não precisamente nas fileiras do Partido Comunista, Freire havia sido membro do então Movimento Democrático Brasileiro [MDB], que depois de tornou “Partido” [o PMDB], até voltar recentemente a adotar a sigla original.

Não há dúvidas de que o pensamento e a trajetória de Roberto Freire o aproximam muito mais do MDB do que do PCB. Atualmente, ele é uma espécie de “dono” do partido Cidadania [antigo PPS, que ostentou a irônica sigla de Partido Popular Socialista durante duas décadas, sem ser nenhuma dessas três coisas], assim como queria se tornar dono do Partidão nos Anos 90.

Freire só se filiou ao PCB em 1985. Foi nomeado presidente do partido quatro anos depois, por ter sido o único integrante do partido membro da assembleia que escrever a Constituição de 1988. Em 1989, se tornou o primeiro candidato à presidência após o retorno do partido à legalidade, e em um contexto mundial em que o campo socialista desmoronava.

Seu poder dentro do partido o levou a liderar a proposta de acabar com a organização. Com a cisão em 1992, Freire passou a comandar o PPS tentando atribuir a ele o patrimônio e a história do PCB. Inicialmente, seu projeto político tentou ser uma alternativa à Lula dentro da esquerda, lançando Ciro Gomes como seu candidato presidencial. Logo, aderiu aos primeiros mandatos petistas como uma das forças mais moderadas da base aliada, enquanto seu pensamento e de seu mentor se revelavam cada vez mais à direita.

Ainda antes de se tornar o Cidadania, durante a década passada, o PPS apoiou todas as candidaturas presidenciais do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), outra agremiação que nasceu com uma bandeira de progressista moderada e se tornou de direita [e cada vez mais de direita] com o tempo.

Talvez o momento mais revelador da verdadeira ideologia Freire foi quando assumiu o cargo de ministro da Cultura no governo de Michel Temer, aquele que assumiu o Palácio do Planalto após o golpe de Estado de 2016 contra Dilma Rousseff. A história da “renovação comunista” brasileira acabou mergulhando no autoritarismo que tanto denunciou o marxismo-leninismo vilipendiado no Congresso de 1992.

Foi assim que as posições eurocomunistas moderadas dentro do PCB levaram a organização ao seu pior momento, marcado pelo gesto infeliz de colocar à disposição do jornal O Globo os arquivos históricos do partido, por meio da doação feita pelo próprio Roberto Freire à Fundação Roberto Marinho. Entre os documentos entregues está a ata de fundação do partido de 1922, permitindo a realização de filmes e novelas que podem contar a história dos heróis e heroínas do Partidão ao seu bel prazer, e manipular tudo o que for do interesse de uma das empesas símbolo do capitalismo brasileiro.

Ao final desta história, é bom refletir sobre aquelas ideias levantadas por militantes como Ivan Pinheiro quando alertam que a verdadeira derrota estratégica da esquerda não está em perder uma eleição, está nessas organizações revolucionárias que se desesperam diante de uma derrota eleitoral, abraçam o progressismo moderado, adotam tendências como o eurocomunismo e vão migrando em suas posições até normalizar a ideia de um “capitalismo humanizado”, ou um “socialismo de mercado”, com posições conciliatórias com grupos conservadores que garantem uma suposta governabilidade.

O esforço de militantes como Ivan Pinheiro, de preservar cartas, arquivos e símbolos históricos – como o telefone 20020855, que ficou em nome de Pinheiro desde a clandestinidade –, permitiu ao PCB sobreviver e recuperar sua identidade em 1995.

No entanto, este 101º aniversário do PCB pode ser um convite a pensar em dois exemplos históricos: temos o Partido Comunista Italiano, que mudou de nome em 1991 e, com o passar dos anos, se transformou no atual Partido Democrático, cujas administrações centristas acabaram entregando o país de bandeja à extrema direita liderada atualmente pela primeira-ministra Giorgia Meloni; e, por outro lado, temos o Movimento 26 de Julho, uma grupo cubano cujo nome faz alusão a uma derrota, data do fracassado ataque ao quartel Moncada, em 1953, que terminou com Fidel Castro preso. Em vez de pensar que tudo estava perdido e se esconder atrás do argumento de que “a correlação de forças obriga a seguir outro caminho”, o movimento com data de derrota persistiu, e até transformar em realidade a Revolução de 1959.

Como todas as derrotas revolucionárias do passado, a história do PCB contida na placa resgatada em 1992 ensina sobre os caminhos aos quais uma “renovação” podem conduzir e os perigos da tentação derrotista, que sempre espreitam quando a história contraria as expectativas dos comunistas.

O que se segue à derrota é sempre uma hora de dúvida e confusão ideológica, que oportunistas como Roberto Freire usam para fazer passar o novo senso comum burguês. Vimos isso na Espanha, na França e na Itália, com o chamado eurocomunismo, assim como com o partido de Salvador Allende no Chile, o Partido Socialista, que também viveu sua “renovação” após as décadas de derrota e perseguição da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Quando a derrota é assumida como inevitável uma “necessidade histórica”, mais real do que a própria revolução, de pensar nas novas formas de práxis revolucionária, como se o tempo presente também as exigisse, tornando mais eficaz o discurso de abandonar “estrategicamente” a luta pelas aspirações de emancipação da classe trabalhadora.

No entanto, não podemos esquecer o gesto revolucionário de preservar esta placa simbólica. A experiência ensina que nos maiores triunfos comunistas perdura sempre uma teimosa determinação revolucionária. Aquela que fez dos sacrifícios de 1905 a vitória em 1917. Aquela que aprendeu a partir da frustração de julho de 1953 para o triunfo em janeiro de 1959.

Insistir após a derrota é a dialética de todo movimento emancipatório, e é exatamente isso que está escrito na placa do PCB, diante do derrotismo e da prostração ideológica dos oportunistas como Roberto Freire.

Pinheiro e seus companheiros optaram por resgatar o que restava de comunista em seu partido e legá-los ao futuro, gesto típico de qualquer revolucionário que, diante da derrota, mantém intacta sua convicção. Hoje, 101 anos depois da fundação do Partidão, seu legado ainda continua.

(*) Maurício Leandro Osorio é um jornalista e escritor cubano-chileno, que acrescenta a seguinte nota: este texto escrito para celebrar o 101º aniversário da fundação do Partido Comunista Brasileiro, em 25 de março de 1922, contou com a colaboração inestimável de importantes companheiros e amigos queridos, como Lucas Schiappacasse, Jennifer Astudillo, Caio Andrade e Victor Farinelli, e nasceu da honra de poder entrevistar o próprio Ivan Pinheiro, secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro entre 2006 e 2015

Publicado originalmente em: https://operamundi.uol.com.br/politica-e-economia/79797/101-anos-do-pcb-a-historia-de-uma-placa

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