A Reforma Tributária Bacurau
No Congresso, o Centrão chantageia com o Orçamento; a Fazenda, cega ao Brasil, mira planilhas. Diálogos de Outras Palavras sugerem dois caminhos opostos – numa reviravolta fiscal que libere os recursos necessários para transformar o país
Antonio Martins para o Outras Palavras
O sequestro das finanças públicas do Brasil pelo fisiologismo do Congresso Nacional aflorou de novo esta semana, numa sequência de episódios. Mesmo pífia, a “Reforma” Tributária aprovada em julho na Câmara e em novembro no Senado continua sem ser promulgada. Há pequenas divergências entre os textos votados em cada casa legislativa, mas o fator principal para a protelação é outro. Os líderes do Centrão querem vender caro ao Executivo a promulgação ainda este ano– pois sabem que ela se tornou indispensável para a fantasia contábil de “déficit zero” do ministro da Fazenda. E de fato, Haddad estava com Lula e o presidente da Câmara, Fernando Lira, num almoço fora de agenda ontem (13/12), em que se barganhou em torno da agenda das últimas semanas do ano, no Legislativo. Os resultados serão conhecidos nos próximos dias.
Em outra frente, os congressistas agiram para tornar ainda mais caótico e paroquial o Orçamento da União. O deputado Danilo Forte (União-CE), relator da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2024, apresentou proposta que desvia uma parte ainda maior dos recursos da União para as emendas individuais dos parlamentares. Se aprovada, ela destinará 50 bilhões de reais para ações que a maior parte dos legisladores define fora de qualquer projeto nacional ou planejamento, em função apenas de seus interesses eleitorais. O deputado Lindbergh Farias (PT-RJ) denunciou: junto com a obsessão insana por “déficit zero”, a mexida ameaça deixar o país sem recursos para qualquer ação ligada à reconstrução nacional. Cada movimento legislativo deste tipo tem enormes repercussões na vida da população – mas todos eles são feitos de costas para a sociedade, graças ao silêncio conveniente da maior parte da mídia.
Em meio a este espetáculo depressivo, ainda é possível imaginar um Estado nacional que enfrente a desigualdade e a regressão produtiva do país? Como, na periferia de um sistema em crise, oferecer serviços públicos, renovar a infra-estrutura – ultrapassada e paupérrima nas regiões suburbanas – e gerar milhões de ocupação dignas? O ciclo de diálogos de Outras Palavras sobre Reforma Tributária dedicou a este tema duas sessões. Em 28/11, o sociólogo do Trabalho e filósofo Dari Krein (Cesit-Unicamp), a economista Kamila Mendonça (UFC) e o auditor fiscal Paulo Gil Introni (Instituto de Justiça Fiscal – IJF) tentaram descrever O Sistema Tributário de que o Brasil Precisa. Uma semana depois, em 5/12, o economista David Decacche (assessoria da bancada do PSOL na Câmara) e a auditora fiscal Fátima Gondim discutiram a possibilidade de um governo progressista emitir moeda para atender às necessidades nacionais. Este segundo diálogo será tratado num texto a ser publicado em breve.
Do primeiro, emergiu uma agenda tributária provocadora, que talvez possa ser resumida em três pontos: 1. O Brasil precisa de uma estrutura de impostos totalmente distinta da atual. Ela não pode ser pensada a partir da correlação de forças hoje existente no Congresso – reflexo do que há de mais atrasado na sociedade brasileira. Precisa estar em sintonia com um horizonte de transformações sociais necessárias para enfrentar a crise civilizatória e promover o resgate do país. 2. A mudança está relacionada à Justiça Fiscal, mas vai além disso. A estrutura de produção e circulação de riquezas mudou profundamente, nas últimas décadas. O capital sente-se livre para impor suas regras. Em resposta, os impostos podem ser, também, instrumentos para dissuadir atividades nocivas aos direitos sociais e à natureza e para estimular novos arranjos sociais. 3. A formulação de propostas está apenas começando, mas já é possível desenhar, em esboço, pontos concretos para a transformação tributária.
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Sociedades complexas necessitam de mais despesa governamental, provocou Paulo Gil Introini, do IJF. No século que se estende de 1880 a 1980, reportou ele, o gasto público multiplicou-se por quatro na França e nos Estados Unidos; por cinco na Alemanha; por onze na Suécia. Foi o que financiou, por exemplo, sistemas de Saúde, Educação e Previdência universais nestes países. E no pós-II Guerra, quando o mundo capitalista sentiu-se ameaçado pela União Soviética, este fenômeno acentuou-se. As alíquotas máximas de Imposto de Renda subiram a 98% na Inglaterra, e 92% nos próprios EUA. Já a ideia da redução de impostos acompanha o neoliberalismo. Incorporou-se ao senso comum por intensa pressão ideológica. Mas está associada à destruição dos direitos sociais e à crise ambiental.
Por trás desta reviravolta, lembrou Dari Krein, do Cesit, está a disputa pelas riquezas produzidas coletivamente. Na segunda metade do século passado, ainda na fase do fordismo, houve intenso avanço tecnológico; mas ele foi, ao menos em parte, apropriado pelos trabalhadores. Esta dupla condição produziu resultados políticos como a redução das jornadas de trabalho, o surgimento do Estado de bem-estar social e o pleno emprego. Nenhuma destas conquistas teria sido gerada pela “livre ação das forças de mercado”…
Há enorme inovação técnica também hoje. Mas, no Ocidente, as condições políticas atuais permitem a uma pequena minoria apropriar-se dos ganhos produtivos – em especial por meio de múltiplas formas de rentismo. Os resultados são desastrosos. Surgiu uma combinação esdrúxula, em que enormes avanços tecnológicos produzem desigualdade e pobreza típicos dos séculos XVIII ou XIX. Mas a própria riqueza que poderia ser criada pela inovação não se realiza, pois o sistema empobreceu seus possíveis consumidores. Por isso, as economias permanecem em crise ou crescem a passos de tartaruga.
Os impostos podem ser uma ferramenta central para corrigir estas distorções, afirmou Kamila Mendonça. Isso é ainda mais verdade num mundo em que perderam força outras formas de luta pela riqueza coletiva – como a ação sindical. E esta potência pode ser multiplicada se os impostos tiverem também viés extra-arrecadatório, de dissuasão. Thomas Piketty, destacou ela, propõe por exemplo uma taxa relevante sobre as emissões de carbono, que seja destinada a combater o aquecimento global e incida sobre atividades facilmente distinguíveis, como alta frequência de viagens aéreas ou uso de jatos executivos. A base lógica para tanto está num dado escandaloso: segundo a Oxfam, o 1% mais rico emite tanto carbono quanto 2/3 dos habitantes do planeta.
Num mundo globalizado, em que os Estados nacionais (especialmente na periferia) são incapazes de enfrentar sozinhos problemas como a mudança climática, as pandemias ou as crises financeiras, há vasta base para tributos internacionais, lembrou Dari Krein. Para ele, a causa da impotência também é politica. A questão ambiental entrou na agenda, mas ainda sem força para constranger o capital. Não se coloca em questão a natureza de um sistema cuja lógica baseia-se na acumulação sem limites – e é, portanto, hostil a um planeta finito.
As bases para a grande mudança:
Em que se apoiaria uma transformação profunda em relação aos sistemas tributários atuais, deformados pelo neoliberalismo? Dari Krein frisou que elemento decisivo é a mobilização social. Nada do que se afirmou acima pode ser obtido nos Parlamentos atuais. Mas o desafio de mobilizar é também uma oportunidade. É hora, apontou, de uma agenda para conquistar corações e mentes dos que vivem na precariedade – e são cada vez mais numerosos. Se houver vontade política, os impostos podem coibir a ação de empresas-plataforma, que não pagam salários, tributos ou seguridade social; não oferecem proteção alguma a seus “associados” e não lhes fornecem sequer instrumentos de trabalho.
Mas estes mesmos impostos, continuou Dari, podem ajudar a realizar um novo imaginário de transformações, baseado no Comum. Por exemplo: diante do retrocesso educativo brutal pós-pandemia, multiplicar escolas em tempo integral, e torná-las abundantes em professores de múltiplas áreas, psicólogos, assistentes sociais, além de atividades que extrapolem as grades curriculares. No Brasil, continuou Dari, há uma geração perdida – 35% da juventude – que não estuda nem trabalha. Só um programa de reconstrução nacional, articulado pelo Estado, poderia oferecer a perspectiva de uma ocupação digna e com sentido.
Que impostos poderiam ajudar a amparar este Estado? Paulo Gil apontou pistas. A primeira parte da receita é conhecida. Em primeiro lugar, os tributos que incidem sobre a renda das pessoas físicas, desde que progressivos. As alíquotas não podem terminar em 27,5%. E, principalmente, não podem ser isentas ou subtributadas, como hoje, as modalidades de renda dos mais ricos – os dividendos e juros sobre o capital próprio, por exemplo. Nem um tributo como o Imposto Territoral Rural pode ter alíquota irrisória, e arrecadação desprezível. É preciso reduzir, em contrapartida, os impostos sobre o consumo, que penalizam os mais pobres. No Brasil, eles são responsáveis por 60% da receita; ¨na maior parte dos países da Europa, mesmo em tempos neoliberais, participam com apenas 30%¨.
Mas há caminhos ainda a desenvolver. As múltiplas formas de rentismo financeiro, hoje privilegiadas, precisam ser muito fortemente tributadas. A produção a exportação de produtos primários – em especial commodities minerais e agrícolas, também. Há, na legislação brasileira, modalidades de tributos como as Contribuições de Intervenção sobre o Domínio Econômico (CIDEs) cuja arrecadação é destinada a atividades específicas. Por que não criar, por exemplo, uma CIDE sobre os automóveis, e destiná-la ao transporte coletivo; ou sobre os agrotóxicos, que beneficiaria a produção agroecológica?
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Dois princípios éticos devem orientar uma Reforma Tributária de verdade, frisaram os debatedores. A desigualdade atual é inaceitável, lembrou Paulo Gil. E se não agirmos logo, a Terra seguirá seu caminho e nos deixará para trás, acrescentou Kamila Mendonça, citando Aílton Krenak. Há, como se viu, vasto lugar para imaginação política – se o tema não se perder nas chantagens do Congresso, nem na obsessão do ministério da Fazenda com o “déficit zero”.
E os caminhos fiscais para a reconstrução nacional não se esgotam nos tributos. No quarto debate da série – que tem a parceria da Fundação Friedrich Ebert (FES) e do Instituto Justiça Fiscal – David Deccache e Fátima Gondim debateram como esta agenda se conecta com outra, mais recente. Eles mostraram que o Estado pode criar dinheiro para promover justiça social e um novo tipo de desenvolvimento – inclusive, enquanto não há condições políticas para a Reforma Tributária. É o que veremos, no último texto desta série.
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