A violência cotidiana da vida na Palestina ocupada

A violência cotidiana da vida na Palestina ocupada

Por: O Poder Popular · Mazur / CatholicNews.org.ukHomem dirige sua moto em meio às ruínas de Gaza, em janeiro de 2015

VIJAY PRASHAD para o Globetrotter - Tradução Opera Mundi

A única forma do novo "regime de segurança" de Israel funcionar seria retirar todos os palestinos de Gaza, seja por meio de massacres ou da expulsão

Dirigir ao longo do Vale do Rio Jordão, no Território Palestino Ocupado (TPO) da Cisjordânia, é uma experiência impressionante. A estrada é oficialmente nomeada de “Estrada 90”. As terras aráveis e irrigadas ao longo desta estrada são mantidas ilegalmente por militares e colonos israelenses, muitos dos quais não são efetivamente cidadãos israelenses, mas sim residentes da diáspora judaica. Um relatório da Comissão das Nações Unidas publicado em 2022 demonstrou que a atividade de colonização constitui um crime contra o direito internacional em matéria de direitos humanos (transferência de população para um território ocupado). Os colonos israelenses e os militares israelenses que a defendem a chamam de Estrada 90 Derekh Gandhi, ou Estrada de Gandhi. Quando passei por essa estrada pela primeira vez, há mais de uma década, fiquei intrigado com o nome de Gandhi. Mahatma Gandhi foi um líder da luta pela liberdade na Índia e, em muitas ocasiões – como no seu artigo de 1938, "Os Judeus" – manifestou a sua simpatia e solidariedade para com o povo palestino. De fato, a estrada que corta a Cisjordânia - uma região crucial para um pretendido Estado palestino - tem o nome de Rehavam Ze'evi, que ironicamente recebeu a o apelido de Gandhi.

Ze'evi liderava o partido União Nacional, que reunia todas as correntes mais perigosas da extrema-direita israelense. Enquanto líder deste partido e, antes disso, do Moledet, Ze'evi defendia a expulsão dos palestinos do que considerava ser o território de Israel (Jerusalém Oriental, Gaza e Cisjordânia). Apoiava a criação de Eretz Yisrael (termo para ‘Terra de Israel’), que se estenderia do rio Jordão ao mar Mediterrâneo. Em março de 2001, Ze'evi – que mais tarde seria acusado de assédio sexual e de envolvimento com ocrime organizado - disse ao The Guardian que "não é assassinato livrar-se de potenciais terroristas, ou daqueles que têm sangue nas mãos. Cada um que é eliminado é menos um terrorista que temos de combater". Alguns meses depois, Ze'evi mostrou que não fazia distinção entre os palestinos, chamando a todos eles de "câncer" e dizendo: "Penso que não há lugar para dois povos no nosso país. Os palestinos são como piolhos. É preciso eliminá-los como piolhos". Ele foi morto a tiros por combatentes da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) em outubro de 2001. O nome da estrada que atravessa a Cisjordânia – prometida a um Estado palestino nos Acordos de Oslo de 1993 – ainda tem o nome de Ze'evi.

Ze'evi foi assassinado por combatentes da FPLP porque o exército israelense tinha assassinado o seu líder, Mustafa Ali Zibri, ao disparar dois mísseis de cruzeiro contra a sua residência em Al-Bireh (Palestina). O assassinato de Zibri não foi um incidente isolado. Fazia parte do plano do primeiro-ministro israelense Ariel Sharon para "provocar o colapso" da Autoridade Palestina – criada para gerir os Acordos de Oslo – e "mandá-los todos para o inferno". Para além do assassinato sistemático de civis, a partir de julho de 2001 o governo israelense matou quatro dirigentes políticos (o líder da Jihad Islâmica, Salah Darwazeh, e o líder do Hamas, Jamal Mansour, em julho, e depois o líder do Hamas, Amer Mansour Habiri, além do líder da Fatah, Emad Abu Sneineh, em agosto). Após o assassinato de Zibri, os israelenses assassinaram Mahmoud Abu Hanoud, do Hamas, em novembro. "Quem quer que tenha dado luz verde a este ato de liquidação", escreveu o correspondente militar Alex Fishman no diário israelense Yediot Ahronot, "sabia muito bem que estava destruindo num só golpe o acordo de cavalheiros firmado entre o Hamas e a Autoridade Palestina; nos termos desse acordo, o Hamas deveria evitar, num futuro próximo, os atentados suicidas dentro da Linha Verde [as fronteiras de Israel anteriores a 1967]."

Violência quente, violência fria

Durante séculos, cristãos, muçulmanos e judeus palestinos viveram lado a lado nas terras que viriam a ser Israel e os TPO, incluindo a região ao longo do vale do rio Jordão. Desde a expulsão dos cristãos e muçulmanos palestinos e a chegada dos judeus europeus, o aparato legal – ou a "violência fria", como descreve o escritor Teju Cole – trabalhou em conjunto com a violência paramilitar e militar contra os palestinos para criar a fantasia de um projeto de Estado etno-nacionalista (o Estado judaico, como era então chamado). A erradicação dos palestinos não-judeus foi fundamental para este projeto, quer através de massacres (Deir Yassin, em 1948), quer através da remoção total da população palestina das suas terras (a Nakba de 1948). Os massacres e as transferências de população foram acompanhados pela negação da existência da Palestina e do povo palestino. O herdeiro de Ze'evi, o atual ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, disse em março deste ano: "Não existem palestinos porque não existe um povo palestino". Esta não é uma opinião que possa ser considerada como um mero discurso de extrema-direita. Ofir Akunis, membro do Likud e ministro da Ciência e Tecnologia, disse há três anos: "Não há lugar para qualquer fórmula de criação de um Estado palestino na parte ocidental de Israel". A expressão "Israel Ocidental" é uma declaração arrepiante sobre o consenso israelense em torno da anexação total da Cisjordânia, ignorando o direito internacional.

É essencial concentrar a atenção em Gaza. A "violência quente" israelense é extrema, com o número de mortes de palestinos – das quais quase metade, em Gaza, é de crianças – chegando a ser superior a 5 mil. A invasão terrestre israelense foi bloqueada, por enquanto, pelo reconhecimento de que o moral da resistência palestina está elevado. Esta lutará contra todos os soldados israelenses que entrarem nas ruínas de Gaza. Antes desta incursão israelense, 450 caminhões entraram em Gaza com mantimentos para os 2,3 milhões de habitantes; foi considerada uma vitória quando nove caminhões das Nações Unidas e onze caminhões da Crescente Vermelha egípcia entraram em Gaza, no dia 21 de outubro. A Anistia Internacional analisou apenas cinco bombardeios israelenses e encontrou provas de crimes de guerra, o que deveria alertar o Tribunal Penal Internacional para reabrir o seu processo sobre as atrocidades israelenses. Isto deveria incluir o crime de punição coletiva, com o corte da água e da eletricidade de Gaza, o bombardeio das estradas de acesso à passagem de Rafah para o Egito e bombardeio da própria passagem de Rafah.

Grandes manifestações em todo o mundo exigem um cessar-fogo (no mínimo) e o fim da ocupação. O Estado de Israel não está interessado. O ministro da Defesa, Yoav Gallant, disse ao Parlamento que as suas forças têm um plano de três pontos – destruir o Hamas, destruir as outras facções palestinas e criar um novo "regime de segurança" em Gaza. O povo palestino – e não apenas as facções armadas – está resoluto na sua resistência à ocupação israelense. A única maneira do novo "regime de segurança" de Gallant funcionar seria apagar essa resistência, o que significa retirar todos os palestinos de Gaza, quer através de massacres, quer através da expulsão. Os Estados Unidos estão alinhados a este plano de extermínio: um memorando do Departamento de Estado dos EUA diz que os seus diplomatas não devem usar frases como "desescalar", "cessar-fogo", "fim da violência", "fim do derramamento de sangue" e "restaurar a calma".

(*) Vijay Prashad é um historiador, editor e jornalista indiano. É redator e correspondente principal da Globetrotter. É editor da LeftWord Books e diretor do Tricontinental: Institute for Social Research. Escreveu mais de 20 livros, incluindo The Darker Nations e The Poorer Nations. Os seus últimos livros são Struggle Makes Us Human: Learning from Movements for Socialism e (com Noam Chomsky) The Withdrawal: Iraq, Libya, Afghanistan, and the Fragility of U.S. Power.

(*) Tradução de Raul Chiliani

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