CAIO PRADO JÚNIOR E A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

CAIO PRADO JÚNIOR E A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

Por: O Poder Popular ·
Por Lincoln Secco

A emancipação política do Brasil não teve, em si, significado decisivo para Caio Prado Júnior; o tráfico de escravizados persistiu e só foi abolido em 1850; e a escravidão perdurou até 1888. E entre os elementos fundamentais do sistema colonial, um se manteve até hoje: a grande propriedade fundiária como eixo fundante da economia exportadora.

É o ano de 1808 que guarda, assim, um significado profundo para a América portuguesa. Além da transferência da corte para o Rio de Janeiro sob o comando do príncipe regente, deu-se a abertura dos portos às “nações amigas” (leia-se Inglaterra), verdadeira ruptura do pacto colonial¹. O significado foi tão profundo que Capistrano de Abreu tomou o início do século XIX como um marco divisório. Caio Prado Júnior considerou a data histórica o limiar de nossa “Revolução da Independência”, a qual se daria entre 1808 e 1831 (ano da abdicação de D. Pedro I). Ele, porém, abarca as revoltas da Regência e até mesmo os primeiros anos da Maioridade como período de incertezas revolucionárias. Embora tenha sido pioneiro ao realçar o papel dessas insurreições no processo de independência, posteriormente reorientou seu foco para as estruturas da sociedade brasileira, deixando em segundo plano a narrativa dos acontecimentos políticos. Questão de ênfase expositiva e não metodológica, posto que em todas as suas obras a contradição entre forças materiais da produção e relações de produção (incluindo sua expressão jurídica, as relações de propriedade) esteve no cerne da análise.

Em Evolução política do Brasil, Caio Prado Júnior observou o processo de Independência à luz dos acontecimentos de 1930, ainda que respeitando procedimentos de pesquisa que ele mais tarde aperfeiçoou. Isso não pode passar despercebido. Não se compreende o seu “1822” sem sua leitura da Revolução de 1930, na qual teve amiudada participação como membro do Partido Democrático de São Paulo.

Tanto a Revolução da Independência quanto a Revolução de 1930 foram lidas por ele como obra mais de uma classe do que da nação. À nossa Independência teria faltado a massa de violência² que se observou na América espanhola (as dificuldades viriam depois da transição política). A Revolução de 1930 também evitou a batalha de Itararé, cidade paulista em que se aguardava o grande confronto entre as tropas “revolucionárias” e as governistas. Houve um acordo e registraram-se apenas algumas escaramuças.

A era das revoluções americanas abre uma transição, definida por Caio Prado Júnior como carente de um estatuto jurídico universalmente aceito: desde 1808 não éramos uma nação autônoma, mas também não mais uma colônia.

A revolução foi lida como resultado de uma contradição entre a evolução econômica e o estatuto colonial. Já a forma da revolução foi um “arranjo político” tanto em 1822 como em 1930. O príncipe regente teve um “papel todo ocasional”, mas as circunstâncias determinaram que fosse em torno dele o desenrolar da luta para afastá-lo da influência das cortes portuguesas. Lembremos que Dom Pedro I, segundo Oliveira Martins, queria ser um Washington, sem, contudo, deixar de ser um monarca. Para o imperador, “a liberdade era um presente, e não o reconhecimento de um direito popular”³.

A Revolução do Porto, preparada “espiritualmente” no Sinédrio (o grupo de radicais que discutiam, à sombra de Manoel Fernandes Tomás, uma nova administração para Portugal), adotou uma constituição segundo o exemplo de Cadiz (1812), que previa unicameralismo e recusa de direito de veto ao monarca. Os deputados não se estabeleceriam por ordens, mas por voto popular (povo entendido aqui enquanto um círculo restrito de eleitores). Com o retorno de Dom João VI do Brasil para Portugal, em julho de 1821, solicitou-se que o monarca jurasse a Constituição, o que ele efetivamente fez.

Para Caio Prado Júnior, todavia, o Brasil formava-se por meio de uma revolução que vinha com sinal contrário: era liberal para a metrópole, mas uma contrarrevolução de ímpeto recolonizador para os “brasileiros”. Aqui se desvela a especial propensão dialética do autor para perceber e incorporar as contradições do processo histórico. Quando ele se volta ao tema da Assembleia Constituinte, nota que também ela terá um papel invertido se cotejada com a da antiga metrópole4. O modelo principal, copiado pelos constituintes de 1823, foi o francês. Mas, as normas que na Europa exprimiam os interesses do Terceiro Estado contra a nobreza, uma vez transplantadas para cá, representaram os anseios dos proprietários rurais contra a burguesia mercantil. Meios coincidentes foram empregados para fins opostos. A obra da Independência era a liberdade econômica e a soberania nacional, dentro de um projeto de “caráter classista”. Por isso, a Independência é produto de uma classe e não da nação.

A Revolução de 1930 tinha sido frustrante para Caio Prado, um acontecimento que apenas produziu uma mudança de superfície. No entanto, ela integrava um processo que se iniciou antes e ainda estava aberto a uma conclusão revolucionária, na qual Caio Prado Júnior se engajou como dirigente da Aliança Nacional Libertadora em 1935.

A espontaneidade que ele acreditava vivenciar na década de 1930 era também encontrada nas insuficiências que observou na “agitação democrática e popular” após 1822. A Revolução da independência foi “incapaz de realizar seu ciclo completo, inábil para propagar a centelha revolucionária através de todas as camadas revolucionárias da sociedade”5.

Caio Prado Júnior fazia notar a dessintonia entre as condições objetivas e a imaturidade subjetiva das classes sociais. Nos anos 1930 a burguesia e as oligarquias estavam menos amadurecidas politicamente que a pequena burguesia e a classe operária. Mas estas duas não possuíam força material para liderar o processo revolucionário. Com a derrota da ANL, Caio Prado Júnior, em ampla medida desenganado, refletiu acerca da Revolução de 1930 como um lento processo, a exemplo da Independência.

A revolução de 1935, única com potencial de completar o ciclo iniciado na década de 1920, havia sido derrotada. Nas décadas seguintes, Caio Prado voltou-se para o estudo da história econômica e procurou outras vias diferentes da insurrecional para a afirmação da independência nacional. Para ele, a forma das nossas tentativas de independência foi uma revolução processual; seu conteúdo foi a construção interrompida de uma economia nacional; seu sujeito deveria ser uma aliança das classes orgânicas do núcleo do processo econômico com uma imensa massa informal de trabalhadores. A Revolução Brasileira continua em compasso de espera. Assim como a independência econômica do Brasil.

Notas:

¹ Caio Prado Júnior, Evolução política do Brasil: ensaio de interpretação materialista da história brasileira (São Paulo, Revista dos Tribunais, 1933).

² Isso não significa ausência de luta popular. O processo, no entanto, foi dirigido de cima contra o setor popular e não apoiado nele.

³ Joaquim Pedro Oliveira Martins, Portugal contemporâneo (Lisboa, Guimarães, 1952), p. 46.

4 Lembremos que a obra Evolução política do Brasil foi publicada no ano seguinte à guerra civil de 1932, cujo lema oficial era o constitucionalismo. Para Caio Prado, que dela não participou e a ela se opôs ainda que passivamente, a Constituição traduz em normas jurídicas o equilíbrio de forças políticas da sociedade. Ideia que seria retomada em texto redigido em Paris, em 1937: “A fórmula final de apaziguamento e reorganização foi dada pela Constituição de 1934”.

5 Ibidem, p. 143.

Publicado originalmente em: https://omomento.org/caio-prado-junior-e-a-independencia-do-brasil/

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