Chile: ultradireita batida, mas há pouco a comemorar

Chile: ultradireita batida, mas há pouco a comemorar

Por: O Poder Popular · Imagem: @jjcc_chile instagram

Atilio Borón com tradução de Rôney Rodrigues para o Outras Palavras - Sociólogo e jornalista argentino, com doutorado em Ciência Política pela Universidade de Harvard. É autor de diversos livros de orientação marxista com um compromisso claro com o socialismo na América Latina. Militante do Partido Comunista da Argentina.

Derrota da proposta de Constituição neofascista foi um duro golpe para os que viam no referendo trampolim para a disputa presidencial. Mas para superar o legado de Pinochet falta reagrupar as forças populares — algo que governo Boric não ousa

No referendo de domingo no Chile estava em jogo não só a aprovação ou não de uma concepção constitucional retrógrada, mas também um primeiro ensaio da disposição das forças políticas com vista às eleições presidenciais de novembro de 2025. Felizmente, o veredicto das urnas derrotou a nova proposta constitucional e representou um grave revés nas expectativas que a direita neofascista tinha de se estabelecer na pole position na futura corrida presidencial. Isto porque se o triunfo do “A Favor” tivesse ocorrido, o Partido Republicano de ultradireita e o seu líder, José Antonio Kast, já teriam iniciado a campanha presidencial, procurando capitalizar a decisão do povo chileno, aprofundando a desorganização e o desnorteamento dos setores democráticos e progressistas.

Pouco depois de conhecido o resultado, surgiram vozes, em muitos casos mal intencionadas: diziam que com o seu voto a população tinha ratificado a Constituição de Pinochet. Essa conclusão não é apenas maliciosa, mas também errônea porque isso não estava em jogo no domingo. Não se pode esquecer que em 2020, 78% do povo chileno votou pela rejeição do referido órgão constitucional. O que precisava ser decidido ontem era se a nova proposta nascida nos esgotos do poder oligárquico chileno seria aceita pela população. O resultado foi categórico: o “Contra” venceu com 56% dos votos, apesar das intensas campanhas de desinformação, de resignação e de incentivo à abstenção, lançadas desesperadamente pela direita.

Agora, o voto é obrigatório no Chile, mas a taxa de participação de 88% deixa claro o fracasso dessa campanha e a vontade saudável de participar que foi demonstrada neste domingo. Em suma, foi rechaçada uma constituição que violava os direitos sociais e trabalhistas fundamentais, que abençoava a mercantilização total do meio ambiente, que se ressentia ainda mais da minguada soberania nacional sobre os bens comuns, que consagrava a impunidade em matéria de direitos humanos e que restringia significativamente os direitos das mulheres e de diferentes identidades de gênero.

Em suma, foi rechaçada uma proposta que apresentava falhas processuais devido à sua natureza e funcionamento antidemocráticos; e, substancialmente, pelo ataque a certos direitos e garantias ainda contidos na Constituição de 1980, especialmente se tivermos em conta que – segundo um estudo do PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento] sobre as mudanças constitucionais a nível internacional – no período pós-ditatorial, a referida peça teve foi objeto de 69 leis de reforma. Isso a tornou a Constituição mais reformada da história do Chile.

Como resultado destas mudanças – que em todo o caso mantiveram a filosofia básica impressa pelo seu editor reacionário, Jaime Guzmán Errázuriz – foi eliminado o artigo 8º, que “proibia grupos ou partidos de natureza totalitária ou fundados na luta de classes”, ou seja, aos comunistas; também foi eliminado a faculdade presidencial de exilar e a exigência de que as reformas constitucionais fossem aprovadas por dois Congressos consecutivos. Além disso, foi anulada a existência de senadores designados e vitalícios (9), somando-se aos 38 decorrentes da vontade popular. E o mandato presidencial foi reduzido de seis para quatro anos.

Tendo em conta este contexto, a proposta elaborada pelos libertários foi um significativo retrocesso que felizmente foi abortado pela derrota do “A Favor”. Nos próximos anos, o Chile terá de enfrentar a tarefa de elaborar uma Constituição genuinamente democrática, expurgada dos legados pinochetistas e das aspirações restaurativas e autoritárias da sua voraz classe dominante e da partidocracia que governa em seu nome, nenhuma das quais aceita a implantação de uma democracia digna desse nome.

Tal coisa não acontecerá no restante do mandato de Gabriel Boric, mas é uma questão pendente que deve ser resolvida sem mais demora na próxima virada presidencial e que exigirá enormes esforços de sensibilização e organização das forças democráticas e populares. Enquanto isso é hora de comemorações. Não porque algo bom tenha sido escolhido, mas porque o povo chileno evitou sabiamente que o mal fosse sucedido por algo muito pior. E, aliás, olhando as coisas deste lado dos Andes, uma vitória da extrema direita no Chile foi impedida de potencializar “selvageria de mercado” do anarcocapitalismo argentino.

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