Marx foi um anticolonialista a favor da libertação do povo árabe

Por: Antonio Lima Júnior ·

Por Marcello Musto, tradução de Sofia Schurig. Publicado originalmente em Jacobin

Quando viveu na Argélia, Marx atacou – com indignação – os abusos violentos dos franceses, seus atos provocativos repetidos, sua arrogância desavergonhada, presunção e obsessão em se vingar como Moloch diante de cada ato de rebelião da população árabe local.

“Uma espécie de tortura é aplicada aqui pela polícia, para forçar os árabes a ‘confessar’, assim como os britânicos fazem na Índia”, ele escreveu.

Marx: “O objetivo dos colonialistas é sempre o mesmo: destruir a propriedade coletiva indígena e transformá-la em objeto de compra e venda”.

O que Marx estava fazendo no Magrebe?

No inverno de 1882, durante o último ano de sua vida, Karl Marx teve uma bronquite grave e seu médico recomendou a ele um período de descanso em um lugar quente. Gibraltar foi descartada porque Marx precisaria de um passaporte para entrar no território, e como apátrida, ele não possuía um. O império bismarckiano estava coberto de neve e, de qualquer forma, ainda estava proibido para ele, enquanto a Itália estava fora de cogitação, uma vez que, como Friedrich Engels colocou, ‘a primeira condição quando se trata de convalescentes é que não haja assédio policial’.

Paul Lafargue, genro de Marx, e Engels convenceram o paciente a ir para Argel, que na época desfrutava de boa reputação entre os ingleses para escapar das rigores do inverno. Como lembrou mais tarde Eleanor Marx, filha de Marx, o que impulsionou Marx a fazer essa viagem incomum foi sua prioridade número um: concluir O Capital. Ele atravessou a Inglaterra e a França de trem e depois o Mediterrâneo de barco.

Ele viveu em Argel por 72 dias e essa foi a única vez em sua vida em que ele passou fora da Europa. À medida que os dias passavam, a saúde de Marx não melhorava. Seu sofrimento não era apenas físico. Ele se sentia muito solitário após a morte de sua esposa e escreveu a Engels que estava sentindo “ataques profundos de melancolia profunda, como o grande Dom Quixote”. Marx também sentia falta — devido a sua condição de saúde — de atividade intelectual séria, sempre essencial para ele.

Efeitos da introdução da propriedade privada pelos colonizadores franceses

Aprogressão de inúmeros eventos desfavoráveis não permitiu a Marx chegar ao fundo da realidade argelina, nem foi realmente possível para ele estudar as características da propriedade comum entre os árabes — um tópico que o interessava muito alguns anos antes. Em 1879, Marx copiou, em um de seus cadernos de estudo, trechos do livro do sociólogo russo Maksim Kovalevsky, Propriedade Comunal: Causas, Curso e Consequências de sua Declínio. Eles eram dedicados à importância da propriedade comum na Argélia antes da chegada dos colonizadores franceses, bem como às mudanças que eles introduziram. De Kovalevsky, Marx copiou: “A formação da propriedade privada da terra — aos olhos dos burgueses franceses – é uma condição necessária para todo progresso na esfera política e social. A manutenção contínua da propriedade comum, ‘como uma forma que apoia tendências comunistas nas mentes, é perigosa tanto para a colônia quanto para a pátria’. Ele também foi atraído pelos seguintes comentários: ‘a transferência da propriedade da terra das mãos dos nativos para as dos colonos foi perseguida pelos franceses sob todos os regimes. (…) O objetivo é sempre o mesmo: destruição da propriedade coletiva indígena e sua transformação em objeto de compra e venda livre, e por meio disso, a passagem final facilitada para as mãos dos colonos franceses”.

Quanto à legislação sobre a Argélia proposta pelo republicano de esquerda Jules Warnier e aprovada em 1873, Marx endossou a afirmação de Kovalevsky de que seu único propósito era a “expropriação do solo da população nativa pelos colonos europeus e especuladores”. A audácia dos franceses chegou ao ponto de “roubo direto”, ou conversão em “propriedade do governo” de todas as terras não cultivadas que permaneciam em comum para uso dos nativos. Esse processo foi projetado para produzir outro resultado importante: a eliminação do perigo de resistência pela população local. Novamente, através das palavras de Kovalevsky, Marx observou: “a base da propriedade privada e o estabelecimento de colonos europeus entre os clãs árabes se tornariam o meio mais poderoso para acelerar o processo de dissolução das uniões de clãs. (…) A expropriação dos árabes pretendida pela lei tinha dois objetivos: 1) fornecer aos franceses o máximo de terra possível; e 2) arrancar os árabes de seus laços naturais com a terra para quebrar a última força das uniões de clãs que estavam sendo dissolvidas, e assim qualquer perigo de rebelião”.

Marx comentou que esse tipo de individualização da propriedade da terra não apenas assegurou enormes benefícios econômicos para os invasores, mas também alcançou um “objetivo político: destruir a base dessa sociedade”.

Reflexões sobre o mundo árabe

Em fevereiro de 1882, quando Marx estava em Argel, um artigo no jornal local The News documentou as injustiças do sistema recém-criado. Teoricamente, qualquer cidadão francês na época poderia adquirir uma concessão de mais de 100 hectares de terra argelina, sem sequer sair de seu país, e então poderia revendê-la a um nativo por 40.000 francos. Em média, os colons vendiam cada pedaço de terra que compraram por 20 – 30 francos pelo preço de 300 francos.

Devido à sua saúde debilitada, Marx não pôde estudar esse assunto. No entanto, nas dezesseis cartas escritas por Marx

que sobreviveram (ele escreveu mais, mas foram perdidas), ele fez várias observações interessantes do sul do Mediterrâneo. As que se destacam são aquelas que lidam com as relações sociais entre os muçulmanos. Marx foi profundamente impressionado por algumas características da sociedade árabe. Para um “verdadeiro muçulmano”, ele comentou: “tais acidentes, bons ou maus, não distinguem os filhos de Maomé. A igualdade absoluta em sua interação social não é afetada. Pelo contrário, só quando corrompidos, eles se dão conta disso. Seus políticos consideram com razão esse mesmo sentimento e prática de igualdade absoluta como importante. No entanto, eles irão à ruína sem um movimento revolucionário”.

Em suas cartas, Marx atacou com desprezo os abusos violentos dos europeus e suas constantes provocações, e, não menos importante, sua “arrogância descarada e presunçosa em relação às ‘raças inferiores’, e sua obsessão sombria, como Moloch, com relação a qualquer ato de rebelião. Ele também enfatizou que, na história comparativa da ocupação colonial, “os britânicos e holandeses superam os franceses”. Em Argel em si, ele relatou a Engels que o juiz progressista Fermé, que ele encontrava regularmente, tinha visto, ao longo de sua carreira, “uma forma de tortura (…) para extrair ‘confissões’ dos árabes, naturalmente realizada (como os ingleses na Índia) pela polícia”. Ele tinha relatado a Marx que “quando, por exemplo, um assassinato é cometido por uma gangue árabe, geralmente com roubo em vista, e os criminosos reais são devidamente apreendidos, julgados e executados ao longo do tempo, isso não é considerado como expiação suficiente pela família colonista prejudicada. Eles exigem, além disso, a ‘detenção’ de pelo menos meia dúzia de árabes inocentes. (…) Quando um colono europeu mora entre aqueles que são considerados as ‘raças inferiores’, seja como colonizador ou apenas a negócios, geralmente se considera ainda mais inviolável do que o rei”.

Contra a presença colonial britânica no Egito

Da mesma forma, alguns meses depois, Marx não poupou críticas à presença britânica no Egito. A guerra de 1882, liderada por tropas do Reino Unido, encerrou a chamada revolta de Urabi, que havia começado em 1879, e permitiu aos britânicos estabelecer um protetorado no Egito. Marx ficou furioso com as pessoas progressistas que se mostraram incapazes de manter uma posição de classe autônoma, e alertou que era absolutamente necessário para os trabalhadores se oporem às instituições e retórica do estado.

Quando Joseph Cowen, um deputado e presidente do Congresso Cooperativo — considerado por Marx “o melhor dos parlamentares ingleses” — justificou a invasão britânica do Egito, Marx expressou sua total desaprovação.

Acima de tudo, ele censurou o governo britânico: “Muito bem! Na verdade, não poderia haver exemplo mais flagrante de hipocrisia cristã do que a ‘conquista’ do Egito — conquista em meio à paz!” Mas Cowen, em um discurso em 8 de janeiro de 1883 em Newcastle, expressou sua admiração pelo “feito heróico” dos britânicos e pelo “deslumbramento de nosso desfile militar”; ele também “não podia deixar de sorrir com a perspectiva encantadora de todas aquelas posições ofensivas fortificadas entre o Atlântico e o Oceano Índico e, de quebra, um ‘Império Britânico na África’ do Delta ao Cabo”. Era o “estilo inglês”, caracterizado pela “responsabilidade” com o “interesse doméstico”. Na política externa, Marx concluiu, Cowen era um exemplo típico “daqueles pobres burgueses britânicos, que gemem à medida que assumem cada vez mais ‘responsabilidades’ no serviço de sua missão histórica, enquanto protestam em vão contra ela”.

Marx empreendeu investigações aprofundadas das sociedades fora da Europa e expressou claramente sua oposição aos estragos do colonialismo. É um erro sugerir o contrário, apesar do ceticismo instrumental tão na moda nos dias de hoje em certos círculos acadêmicos liberais.

Durante sua vida, Marx observou de perto os principais eventos da política internacional e, como podemos ver em seus escritos e cartas, na década de 1880 ele expressou firme oposição à opressão colonial britânica na Índia e no Egito, bem como ao colonialismo francês na Argélia. Ele estava longe de ser eurocêntrico e obcecado apenas pelo conflito de classes. Marx considerava o estudo de novos conflitos políticos e áreas geográficas periféricas como fundamental para sua crítica contínua do sistema capitalista. O mais importante é que ele sempre tomou o partido dos oprimidos contra os opressores.

Sobre os autores

MARCELLO MUSTO

é professor associado de Teoria Sociológica na Universidade de York (Toronto) e autor de vários livros, incluindo Another Marx: Early Manuscripts to the International (Bloomsbury, 2018).

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