O mal que o medo faz: sobre as eleições presidenciais
Atenágoras Duarte - ex-membro do Comitê Central e militante do PCB em Pernambuco e eleitor de Sofia Manzano e Antônio Alves para presidência do Brasil
O governo Bolsonaro é uma tragédia que foi amplamente anunciada em 2018. Bolsonaro pode mentir religiosamente 3 vezes ao dia (pelo menos), mas ninguém pode dizer que ele mentiu quanto a sua natureza. Ele é fascista, mesmo que não se reconheça como tal. Em 2018, muito se fez para mostrar a ameaça que era eleger Bolsonaro. Não foi suficiente, e nós, da esquerda, precisamos continuar estudando para entender o que diabo foi aquela onda fascista que elegeu Bolsonaro, Dória, Zema, Witzel e suas falanges de demônios do inferno.
Não precisamos, portanto, conversar sobre o mal causado por este governo fascista. O fato deste governo, por uma questão de correlação de forças, não ter aplicado todo o programa que deixa claro, ao longo de toda sua história, que gostaria de aplicar (prisão, tortura e assassinato de oponentes políticos), não muda sua natureza fascista. Aos que tem dúvida, sugiro ler, entre outros, um texto disponível na internet: as 14 características do fascismo eterno, de Umberto Eco. Também não precisamos, portanto, discutir que a prioridade este ano para qualquer um que rejeite a barbárie e a violência fascista, é derrotar Bolsonaro. Precisaríamos ter derrotado com um processo de Impeachment, para ele nem ser candidato, mas, infelizmente, por razões eleitorais, as maiores forças de oposição (PT e PCdoB) nem sequer tentaram de fato. Mas esta é outra conversa.
Não está em discussão que a prioridade é derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo. A polêmica é como. As forças políticas de esquerda que estão apoiando Lula defendem que combater Bolsonaro é sinônimo de apoiar Lula, e que é preciso a vitória no primeiro turno de qualquer maneira. Eu entendo o medo das pessoas. Entendo seu desespero. Mas o medo não costuma ser bom conselheiro. É bom lembrar que o fascismo se alimenta de dois sentimentos fundamentais: o ódio e o medo. Com estes dois sentimentos, o fascismo trabalha para construir o irracionalismo com o qual a classe trabalhadora cai na estranha situação de apoiar as políticas que são mais nefastas, mais prejudiciais para elas mesmas. Ódio e medo são ferramentas de controle político. E é uma ilusão achar que apenas os fascistas sejam atingidos pelo mesmos. Não vou aqui travar um debate moral sobre tais sentimentos, mas tão somente lembrar que a melhor arma que nós temos contra o poder econômico e político das classes dominantes, que se valem do fascismo, é a razão coletiva. Ou seja, precisamos de organização, planejamento, mobilização e consciência política.
Pensemos um pouco. Ao aceitar os termos da campanha pelo voto útil, aceitamos aumentar o grau da polarização que já existe. Ora, um ambiente polarizado é tudo que o fascismo mais quer. O sentimento de “nós contra eles” facilita para esvaziar a reflexão e o debate político. Com a tática de antecipar o segundo turno, a campanha de Lula não consegue apenas votos para ele. As estatísticas mostram que a migração de votos de Ciro e Tebet também beneficiam Bolsonaro. Se é para temer alguma coisa (e saber que o medo não ajuda na ação, não significa, obviamente, que sejamos capazes de não senti-lo), eu temeria o total de votos de Bolsonaro já no primeiro turno. Quanto mais votos ele tiver, mais força ele terá para questionar o resultado e para liderar a oposição quando tal questionamento não resultar em um golpe, como eles gostariam. Também avalio que não há correlação de forças para um golpe fascista ser bem sucedido, hoje, no Brasil. Mas não significa dizer que não possa existir a tentativa, e que isso em si já não seja um problema, ou que o mesmo possa vir a ser tentado em alguma situação mais favorável no futuro. Quando menos votos tiver Bolsonaro, menos riscos teremos.
Entretanto, tudo é colocado de lado em função do medo de que ocorra o segundo turno. Para que o segundo lugar do primeiro turno ganhe no segundo turno (algo que ainda não ocorreu nas eleições presidenciais no Brasil), é preciso que os eleitorados dos candidatos derrotados migrassem em massa para o segundo lugar. No caso concreto atual, todas as pesquisas indicam que, em um segundo turno, Lula herdaria mais votos dos outros candidatos que Bolsonaro. Além disso, também segundo praticamente todas as pesquisas eleitorais, os aliados atuais ou potenciais de Lula tendem a ganhar na maioria dos Estados. A máquina de campanha eleitoral, hoje envolvida em outras disputas, estaria voltada para as eleições presidenciais, quando muito dividindo, de forma obviamente vinculada, com a campanha dos segundos turnos de alguns governos. Não precisa de muita matemática para ver que Lula ganha neste recurso, ainda mais quando se sabe que, se tiver o segundo turno, PDT e MDB irão apoiá-lo, contra um Bolsonaro com rejeição acima de 50%. O que pode, portanto, justificar o medo do segundo turno? Vejo três argumentos:
1. o medo de que “surja alguma coisa”. Só que, para os bolsonaristas, a luta é para não serem derrotados já no primeiro turno. Por que eles guardariam alguma munição para um segundo turno que simplesmente pode não ocorrer? Se tal suposta arma for tão eficaz para ameaçar Lula no segundo turno, mais eficaz ainda seria no primeiro, visto que com certeza teria que ser alguma mentira (algum brasileiro teve a vida mais investigada que Lula?), que talvez não tivesse tempo de desmascarar no primeiro turno.
2. para dar uma mensagem para o mundo, a de que o Brasil rejeita o bolsonarismo. Ora, aqui tem um argumento mentiroso e ofensivo: a de que, quem não vota em Lula, vota em Bolsonaro. É a votação de Bolsonaro que mostra sua força. Dizer que a votação recebida pelas candidaturas que defendem o socialismo (PCB, UP, PSTU) representa um apoio (velado, indireto ou na prática) ao bolsonarismo é um absurdo que, talvez, só fizesse algum sentido se Bolsonaro tivesse, de fato, alguma vantagem indiscutível para o segundo turno. Só que não tem. O que sustenta tal perspectiva é apenas medo quanto ao que pode vir, sem nenhuma base nas pesquisas eleitorais, nos dados materiais de campanha, nos apoios dos partidos ou na realidade econômica e social.
3. que o segundo turno seria mais violento que o primeiro. Nós enfrentamos o fascismo, os riscos de violência continuarão a existir em qualquer cenário, tenham ou não dois turnos. Lembrando que a posse será em janeiro, termine a eleição no primeiro ou no segundo turno. E sem a campanha eleitoral para estimular um Bolsonaro a conter suas falas violentas (como ele ensaiou fazer), o tempo até a posse, em janeiro, pode ser usado para mobilizar as hostes fascistas para continuar lutando pelo poder. Ou seja: também pode existir um risco relevante em dar mais tempo entre a formalização da derrota de Bolsonaro e a posse de Lula.
Ter 3 candidaturas que defendam o conjunto da pauta das classes trabalhadoras (coisa que a candidatura Lula/Alckmin claramente não faz), ajuda para atacar Bolsonaro. São mais pessoas dando entrevistas, em mais espaços, com outros argumentos, contra Bolsonaro. Esse processo, somando-se às candidaturas da direita não fascista de Ciro e Tebet, ajudam a diminuir o grau de polarização, o que ajuda no debate político, pois exige reflexão, diferenciação, informação e racionalidade, tudo que os fascistas não querem. Um ambiente politizado ajuda mais a diminuir os votos de Bolsonaro do que um ambiente polarizado de antecipação do segundo turno. E no segundo turno, tirando Ciro que vai para Paris, e provavelmente o candidato do “Novo” (“de madrugada privatizarei tua alma!”), todo o resto votaria contra Bolsonaro, ou no mínimo se absteria. Se tiver segundo turno, claro. Hoje, as pesquisas indicam que não haverá.
Seja no primeiro turno, seja no segundo turno, Bolsonaro será derrotado (desde 2021 que as pesquisas indicam isso, assim como análises da conjuntura econômica e social). E ele sabe disso. Falta descobrir o tamanho da derrota. E nisso, demonstrar na prática compromisso com as liberdades democráticas, aceitando e respeitando as diferenças, ajuda muito mais do que ofender a esquerda socialista dizendo que a mesma (que foi a última a deixar a campanha Fora Bolsonaro) é bolsonarista por não ser submissa. Além disso, candidaturas não são apresentadas apenas pela chance de se eleger. Elas são lançadas em nome de programas políticos. Manter presente e viva a pauta do socialismo, manter viva a consciência de classe, por mínima que seja, contribui muito mais para o combate a um fascismo que nada mais é do que a face mais grotesca do capitalismo, do que uma política de conciliação que desorganizou, desmobilizou e despolitizou as classes trabalhadoras.
Em síntese: a ameaça fascista não acaba em 02 de outubro de 2022, seja qual for o resultado. E a melhor forma de combatê-la ainda é fazer o inverso da política de conciliação: organizar, politizar e mobilizar aqueles que vivem do seu próprio trabalho em torno de uma agenda anticapitalista. E é isso que buscam as candidaturas socialistas para presidência, que só conseguiram algum espaço midiático relevante por existirem. Em especial, é isso que tem sido feito com muita competência, por minha candidata a presidência, Sofia Manzano.
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