O papel da cultura na Revolução Brasileira
Por Gabriel Galego
I _ a língua do povo
Dentro da sociedade capitalista moderna, a produção do trabalho artístico cumpre um papel essencial, do ponto de vista ideológico. A classe trabalhadora, seja ela rural ou urbana, antes de acessar o conhecimento letrado e científico, primeiro apreende a brasilidade através de nossas manifestações culturais, que perpassam festividades populares e manifestações artísticas. Depois da família e da religião, as linguagens artísticas são as primeiras responsáveis pela formação das consciências sociais, influenciando fortemente as massas. Nossa consciência, enquanto brasileiros, é formada por referências culturais diversas – seja da cultura popular e tradicional, como o samba, o jongo, o maracatu rural etc.; seja da cultura de massas, nacional ou internacional. A linguagem oral – e aqui as culturas populares cumprem um papel fundamental – tem um enraizamento muito mais profundo na formação da consciência brasileira.
A linguagem acadêmica e o pensamento filosófico ainda são de difícil acesso para a maior parte da população. Esses são conhecimentos restritos às universidades e a outros espaços de poder, como o Estado e a mídia. Por exemplo, em 1960, 39,6% da população brasileira era analfabeta. Hoje, segundo o IBGE, a taxa está em 6,6%. Entretanto, segundo a Associação Brasileira de Estágios, apenas 5% da população brasileira detém o título de ensino superior completo. O conhecimento letrado, dentro da história do Brasil, sempre foi inacessível para as classes populares – e, mais do que isso, foi um instrumento de opressão e dominação da classe dominante.
Mas, por que essa particularidade histórica da formação da consciência brasileira é fundamental para os comunistas?
A ciência continua sendo um dos elementos centrais para o desenvolvimento da sociedade capitalista e sua manutenção. Mas, as massas falam a língua das artes e da religiosidade. As tradições populares e tradicionais da cultura brasileira, afro-brasileiras e das culturas indígenas estão quase sempre ligadas à espiritualidade e à expressão artística. Algo não pode nunca ser perdido de vista pelos comunistas brasileiros: a ciência é o sustento da nossa atuação política, tática e estratégia, mas a arte e a espiritualidade são as melhores formas de comunicação com os povos. Queremos educar a classe e levar o conhecimento científico, mas não podemos descartar a arte popular e a espiritualidade como insignificantes ou falsas diante da ciência do proletariado para entendermos a realidade brasileira. Essa atitude, isto é, o menosprezo do conhecimento intrínseco às formas de consciência artística e espiritual, é o que chamo de “cientificismo”.
Os comunistas brasileiros, interessados em compreender verdadeiramente sua pátria, têm o dever de aprender com os mestres e mestras da cultura popular, com os sacerdotes e suas inúmeras práticas e sabedorias – aprofundando os conhecimentos acerca da formação cultural brasileira em suas dimensões artísticas e espirituais. Esses conhecimentos faltam aos marxistas contemporâneos, mas é indispensável.
Como diria Marx, em suas famosas teses contra Feuerbach, o educador também precisa ser educado. Se podemos oferecer a ciência do proletariado para as massas, deixemos que as massas nos ofereçam a sabedoria e a estética popular, indígena e quilombola, assim como suas formas de organização popular. Somente assim poderemos construir uma Revolução genuinamente brasileira – uma reordenação radical da política e economia fundada no marxismo, mas incluindo os diversos povos e nações presentes no Brasil e, o mais importante, nunca esquecido das potencialidades revolucionárias do sentimento e da fé.
II _ Os comunistas e a produção cultural
No ciclo entre 1945-1964, o Partido Comunista Brasileiro nutria ilusões na estratégia conciliatória e nacional-libertadora. Entretanto, também gozava de grande prestígio no seio popular. A questão cultural tinha uma importância crucial para entender Brasil. Nessa época, foram feitas sínteses muito relevantes para entendermos a cultura brasileira, que nos servem ainda hoje. Por exemplo, em 1937 dois jovens intelectuais, Edison Carneiro e Aydano Ferráz, então militantes do PCB, estavam à frente da organização do II Congresso Afro-Brasileiro, que pela primeira vez colocou dezenas de mães de santo dentro da universidade e criou laços profícuos do Partido com os povos de terreiro.
Era notável a capilaridade do PCB dentro dos chamados intelectuais, artistas e cientistas, com personalidades preocupadas com a questão da cultura¹. Astrojildo Pereira, no artigo “Cultura, Classe e Política”, escrito em 1960, retoma o pensamento de Lenin e de Sílvio Romero para pensar uma particularidade da cultura brasileira: existe um antagonismo entre a cultura popular e a cultura das classes dominantes. A luta de classes se estabelece também nas disputas dentro da cultura nacional.
A cultura dominante, em sua modalidade brasileira, é sempre subordinada ao imperialismo, sobretudo o norte-americano. Astrojildo, com toda razão, fala que “os imperialistas sabem muito bem que não podem exercer plenamente a sua função dominadora sem uma combinação adequada de pressões econômicas e políticas com pressões ideológicas e culturais” (p. 258). Outro pensador marxista, Nelson Werneck Sodré, analisa o mesmo fenômeno de dominação cultural no quadro brasileiro. Em seu livro, “Ideologia do Colonialismo”, escrito em 1961, demonstra como essa subordinação dos países subdesenvolvidos pelas produções culturais do centro está enraíza desde a colonização e aparece na chamada “ideologia do colonialismo” e na “transplantação cultural”. Em Introdução a Revolução Brasileira, em que aborda também essas categorias, segue a mesma lógica levantada por Astrojildo, comentando que
Não era possível que se aceitasse como a face real [do Brasil] aquela em que estavam agrupados escravos negros, trabalhadores mestiços livres, comerciantes urbanos, pequenos funcionários. Esta era o Brasil, sem dúvida, — mas o Brasil que se devia esconder, como se escondem as vergonhas, aparentando identidade com os padrões externos, alardeando que também aqui havia gente do mesmo molde que o europeu de classe superior. (Introdução a Revolução Brasileira, p. 138)
Essa configuração da luta de classes dentro da cultura nacional, que além dos pobres e negros, ainda abarca as centenas de etnias indígenas – essa disputa entre Brasil e Brazil, como diria Aldir Blanc – ainda não se esgotou.
Atualmente, somos a minoria dentro do debate público, inclusive dentro da esquerda. Por outro lado, desde 1990 os comunistas forjaram uma leitura científica eficaz da realidade econômica e social brasileira. Avançamos com a nossa estratégia, efetuando uma profunda autocrítica e descartando a ideia do etapismo. Olhando desse ponto de vista, pudemos superar problemas teóricos graves que enviesavam a leitura da conjuntura e da estratégia do Partido. Houve avanço na construção científica e uma sólida formação política, o que tem dado resultados muito significativos, sobretudo na editoração independente e na formação de quadros de cientistas competentes. Estamos engatinhando em direção a uma influência decisiva no campo ideológico. Apesar desses passos, atualmente não temos um grande nome marxista, seja cientista ou artista, dedicado a questão da cultura popular e das artes.
Nos últimos cinco anos, tem aparecido nomes da arte independente que se identificam com o comunismo, como Siba, FBC e Don L. Dentro da juventude, como tem sido o costume da renovação de quadros dos comunistas, já vemos nomes que começam a se destacar, sobretudo no hip-hop, mas ainda são pouco conhecidos do grande público. Estou convencido que essa falta de presença na cultura nos impede de criar uma comunicação mais efetiva com as massas, que toque as mentes, mas também os corações. A inserção dos comunistas na produção cultural e na criação artística, reconhecendo a potencialidade de sua cultura popular – está diretamente ligada à nossa inserção nas massas, sendo uma de suas múltiplas determinações.
Notas:
¹ Importante pontuar que a relação do Partido com a produção intelectual nunca foi isenta de atritos – basta pensarmos na política do realismo socialista. Ou no desprezo dos comunistas pela arte abstrata na primeira metade do século XX, interpretada como “arte burguesa”. Existe uma relação entre o controle do Partido e a liberdade individual do artista, do ponto de vista da forma e do conteúdo das obras artísticas – que, por vezes e em determinadas condições históricas, se torna uma contradição.
Publicado originalmente em: https://omomento.org/o-papel-da-cultura-na-revolucao-brasileira/