O que significa "dolarização"?

O que significa "dolarização"?

Por: O Poder Popular ·

Consequências da abdicação da soberania monetária

Prabhat Patnaik - Economista comunista indiano - tradução resistir.info

O novo presidente da Argentina, Javier Milei, propõe a utilização do dólar americano como moeda do seu país, abolindo simultaneamente o seu banco central. O que está em causa nesta proposta não é apenas a manutenção de uma taxa de câmbio fixa entre o dólar e a moeda nacional, mas a abolição total da moeda nacional. A manutenção de uma taxa de câmbio fixa não impede que o banco central do país imprima mais moeda nacional sempre que haja uma procura por ela, utilizando simultaneamente uma série de instrumentos para garantir que não haja uma transferência da moeda nacional para o dólar, de modo a que a sua taxa de câmbio permaneça fixa; mas a "dolarização" significa uma transferência completa para o dólar, abolindo tanto a moeda nacional como o banco central a quem normalmente é confiada a responsabilidade de a imprimir.

Um exemplo tornará clara a diferença. Suponhamos que, a um dado nível do produto interno bruto, dos preços e da taxa de juro, a procura total de moeda é de 100 unidades de moeda nacional, enquanto a sua oferta é de 90; então, o banco central pode imprimir impunemente 10 unidades adicionais de moeda nacional, sem qualquer receio de que essa impressão adicional perturbe a taxa de câmbio fixa face ao dólar. Mas, no caso de uma economia "dolarizada", em que o dólar é a única moeda utilizada, se a procura de dólares, a um dado nível do PIB, dos preços e da taxa de juro, exceder a oferta de dólares na economia, não é possível imprimir dólares adicionais, uma vez que isso só pode ser feito pelo banco central dos EUA e não pelo banco central do país em causa, que, de qualquer modo, foi totalmente abolido. Nesse caso, as únicas opções disponíveis para o país são: obter dólares por todos os meios possíveis (pedindo emprestado ao estrangeiro ou vendendo os ativos do país, se necessário) para manter o nível do PIB; ou reduzir o PIB até que a procura de dólares diminua para igualar a oferta; ou uma combinação das duas. A opção de obter uma maior oferta da moeda simplesmente recorrendo ao banco central está excluída.

Por outras palavras, o endividamento externo de um país aumenta (ou a sua riqueza material diminui ao ser vendida ao estrangeiro), não só porque gasta mais do que as suas receitas (como acontece frequentemente em circunstâncias normais e se expressa num défice da balança de pagamentos), mas também porque a sua procura por meio circulante aumenta em relação à sua oferta.

Isto implica uma duplicação da pressão contracionista sobre a economia, se o nível da dívida externa não aumentar. Suponhamos para começar que a economia está em equilíbrio e que, num determinado período, as suas exportações aumentam 10 dólares; se as suas importações são 10% do PIB, então (ignorando outras rubricas da balança de transações correntes), o seu PIB só pode aumentar 100 dólares sem que seja necessário aumentar a sua dívida externa. Esta é a primeira pressão contracionista sobre a economia, nomeadamente a redução do aumento do PIB para equilibrar suas contas externas. Mas se o rácio entre a moeda (ou a chamada moeda de reserva) e o PIB também for de 10 por cento para efeitos de circulação do PIB, então, para sustentar um aumento de 100 dólares do PIB, seriam necessários mais 10 dólares. Uma vez que estes 10 dólares não podem ser impressos internamente, um aumento de 100 dólares no PIB não pode ser sustentado se o endividamento externo não aumentar.

O aumento do PIB, neste caso, só pode ser de 50 dólares, pois só assim a procura adicional de dólares, 5 para as importações e 5 para a circulação do PIB, igualará o montante de dólares ganhos com as exportações. Esta é a segunda compressão do PIB, decorrente da necessidade do meio circulante. Por outras palavras, as receitas em dólares do país terão agora de pagar simultaneamente as suas importações e a sua necessidade de meio circulante. Ao abolir completamente a moeda nacional e, por conseguinte, a possibilidade de um banco central imprimir essa moeda nacional para assegurar o fornecimento necessário do meio de circulação, e ao adotar, em vez disso, a moeda de um país estrangeiro como meio de circulação, quando o banco central desse país estrangeiro não tem qualquer obrigação de imprimir moeda para satisfazer a nossa exigência de um maior volume de meio de circulação, introduzimos uma restrição adicional sobre o PIB de um país, que teria agora de ser duplamente esmagado.

Este duplo esmagamento teria de ser efetuado através de cortes nas despesas sociais, cortes nos salários dos funcionários públicos, cortes nas pensões, cortes nos salários dos trabalhadores e, claro, cortes no emprego. Por outras palavras, a adoção do dólar como a moeda do país, quando esses dólares são impressos no estrangeiro, sem que o país tenha qualquer controlo sobre a sua oferta, exceto na medida em que os ganha apenas através das exportações (se o seu endividamento externo não aumentar ou se os ativos nacionais não forem vendidos a estrangeiros), significa necessariamente uma grande intensificação da miséria para a sua população. E se estes modos de ataque à população não são empregados de imediato porque os dólares são emprestados do exterior, então isso apenas adia o ataque; não impede o ataque.

Porque então um governo recorre então a uma medida tão absurda como substituir a sua própria moeda nacional pelo dólar americano? A razão ostensiva no caso da Argentina é a taxa de inflação extremamente elevada, que ronda os 150 por cento ao ano. Dado que, no capitalismo, o único antídoto para a inflação (quer isso seja explicitamente admitido ou não) é a criação de desemprego e a redução dos salários, Javier Milei está a recorrer a esse antídoto violentamente. Mas a chicana por detrás disto precisa ser revelada.

O anterior Presidente de direita, Macri, havia contraído um grande empréstimo externo para gerir o défice da balança de pagamentos da Argentina, grande parte do qual foi utilizado para financiar a fuga de capitais privados do país. Quando chegou a altura de começar a reembolsar esse empréstimo, a balança de pagamentos foi seriamente tensionada; e essa tensão foi também agravada pela fuga de capitais empreendida pelos argentinos ricos. A desvalorização da moeda que se seguiu provocou uma inflação de custos, devido ao aumento dos custos em moeda local dos inputs importados, que se repercutiu nos preços dos bens finais.

Ora, numa sociedade em que os salários estão indexados aos preços e os trabalhadores estão geralmente organizados em sindicatos fortes, mesmo uma ligeira subida da inflação provoca rapidamente um aumento acentuado dos preços, devido à ausência da espécie de "almofada" que um vasto exército de trabalhadores não organizados proporciona. Não é, pois, surpreendente que a inflação na Argentina se tenha tornado tão rápida num curto espaço de tempo. O governo de Milei propõe-se controlar esta inflação não através da introdução de restrições à fuga de capitais, não através da estabilização da taxa de câmbio através da introdução de controlos comerciais adequados para ultrapassar a escassez de divisas, não através da implementação de qualquer controlo direto dos preços, mas através do lançamento de um ataque maciço à classe trabalhadora argentina e aos seus sindicatos. Por outras palavras, a proposta política de Milei equivale a uma forma muito cruel de ataque de classe à classe trabalhadora daquele país. A classe trabalhadora é obrigada a suportar o fardo do repatriamento da riqueza dos argentinos ricos do país para os centros metropolitanos.

Javier Milei é a mais recente adição à lista de governantes neofascistas que estão a surgir em várias partes do mundo. Este recrudescimento do neofascismo é um reflexo da crise do neoliberalismo, no contexto da qual a grande burguesia está a fazer uma aliança com elementos fascistas para manter a sua hegemonia e atacar a classe trabalhadora. Os governantes neofascistas que estão a surgir na atual conjuntura apenas podem mudar a forma da crise, por exemplo, da inflação para a imposição de desemprego e para a compressão de rendimentos dos trabalhadores, como está a ser proposto na Argentina, mas não podem resolver a crise.

De facto, à medida que a crise se intensifica e a taxa de crescimento das exportações abranda ainda mais para países como a Argentina, a estratégia neofascista argentina aumentará grandemente o fardo sobre os trabalhadores na forma de desemprego e compressão dos rendimentos:   o duplo esmagamento contracionista acima referido tornar-se-á ainda mais sufocante para o povo. O que é necessário é uma resolução da crise que transcenda o próprio regime neoliberal.

07/Janeiro/2024

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