Oscar Niemeyer e o PCB: arquiteto centenário, partido centenário
Quando o Partidão chega a um século de vida, quinze anos após centenário do arquiteto, vale a pena lembrar alguns momentos de sua notável atuação militante
Este artigo é parte da série Comunistas de Brasília iniciada por ocasião do centenário do Partido Comunista Brasileiro.
por Danilo Matoso, publicado originalmente na Revista O Ipê
Meados da década de 1980, restaurante Nino, Copacabana. Tavares, um lobista ligado ao ministro do Exército, comenta em voz alta com os amigos, para ser bem ouvido pelos circunstantes: “Tem uma esquerda que vai para o governo fazer Sambódromo…” Ao lado um senhor de seus 80 anos, charuto na mão, diz a sua interlocutora: “é comigo”. Levanta-se, troca o charuto de punho e desfere um soco no rosto do fanfarrão – que não se furta a reagir com outro golpe.
O pugilista tardio dessa anedota, contada em biografia de Marcos Sá Corrêa, era Oscar Niemeyer Ribeiro de Almeida Soares Filho (1907-2012), o maior arquiteto brasileiro de todos os tempos, militante do Partido Comunista Brasileiro desde 1945. Naqueles anos, prestando serviços para o governo de Leonel Brizola e de Darcy Ribeiro no estado do Rio de Janeiro, concebera a avenida do samba como um conjunto de escolas sob a arquibancada.
Niemeyer não levava desaforo político pra casa e, com a mesma firmeza, manteria suas convicções revolucionárias ao longo de seus 104 anos bem vividos. Como dizia em suas memórias, As curvas do tempo (Revan, 1998), “nunca me calei. Nunca escondi minha posição de comunista. Os governantes compreensivos que me convocam como arquiteto sabem da minha posição ideológica. Pensam que sou um equivocado e eu deles penso a mesma coisa”.Se, no último dia 25 de março, o Partidão chegou a um século de vida, quinze anos após centenário do arquiteto, vale a pena lembrar alguns outros momentos dessa notável atuação militante.
Arquiteto reconhecido, militante engajado
Carioca nascido em 1907 nas Laranjeiras, Niemeyer concluíra o curso de arquitetura na Escola Nacional de Belas-Artes em 1935. Trabalhou próximo ao gabinete de Rodrigo Mello Franco Andrade e Lucio Costa quando da criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan, atual Iphan) desde 1938, bem como no projeto da própria sede do Ministério da Educação e Saúde Pública, que tinha à frente o conservador mineiro Gustavo Capanema. Talvez por isso o arquiteto só se sentiria à vontade para ingressar no PCB dez anos depois, após o fim da Guerra, o fim da era Vargas e o retorno do Partido à legalidade em 1945.
Ele mesmo relataria qual a medida de seu envolvimento num número especial de 1985 da Módulo: “até aquela data, a minha posição política se resumia em apoiar os movimentos progressistas, assinar protestos, contribuir para o Socorro vermelho etc. Mas, daí por diante, a política começou a comandar todas as minhas decisões. Já não era apenas a miséria brasileira que me revoltava, mas essa pobreza imensa que pesa sobre o mundo”. Tendo recebido de herança de sua tia a casa em que tivera escritório, à rua Conde Lages 25, na Glória, não hesitou em cedê-la ao PCB dizendo: “Prestes, fica com a casa. Sua tarefa é muito mais importante que a minha”.
O arquiteto já conhecera Nova York em 1938, quando da elaboração do projeto do pavilhão do Brasil na feira mundial de 1939, em conjunto com Lucio Costa. Voltaria em 1946 à metrópole com Le Corbusier e outros profissionais de vários países para participar da comissão liderada por Wallace Harrison encarregada do projeto da sede da Organização das Nações Unidas (ONU). Venceria o concurso interno para a concepção do edifício, com feição geral hoje construída.
O americano, em todo caso, um dia apareceria com o exemplar de 5 de maio de 1947 da revista Time em mãos. Numa matéria intitulada “Sobre pilotis”, o brasileiro era qualificado como comunista e “extremista” pois estivera vendendo o jornal do PCB, Tribuna Popular, pelas ruas do Rio no ano anterior. Vários colegas gostaram. O russo da equipe, Nikolai Bassov, o repreendeu: “está errado. O PC deve preocupar-se apenas em tê-lo influente na sua profissão e não vendendo jornais na rua”.
Na verdade, Niemeyer já era profissional conhecido e influente, afinal, fazia parte daquela seleta equipe. Além disso, não apenas vendia o Tribuna Popular como também projetara a sede do jornal, que incluía a gráfica no térreo, um auditório no mezanino, e quatro pavimentos de redação acima. O autor da obra faz questão de ressaltar que “sob o ponto de vista arquitetônico essa construção deverá, atendendo às necessidades do programa, exprimir a técnica moderna. Assim, a fachada que é ensolarada à tarde está provida de brise-soleils móveis, verticais, que evitarão a incidência do sol nas salas além de permitir o controle de iluminação interna”.
Talvez por conta do reencontro com Le Corbusier em Nova York, e seguindo a orientação do camarada russo, publicaria no quarto tomo da Œuvre Complète do mestre suíço um texto, intitulado O que falta a nossa arquitetura, em que conclui otimista: “As diferenças de classe diminuem e os homens começam a se entender e a se aproximar tendo em vista os problemas relativos ao bem-estar coletivo. As obras sociais são prioridade nos programas de governo, e enfim, a evolução social, livre da reação fascista, progride de modo mais célere e consciente. Os arquitetos devem ser os elementos ativos no momento que atravessamos”.
A elevada elaboração de propósitos entretanto não o impediria de, praticamente ao longo de toda a sua vida, participar de atividades de agitação e propaganda do Partido. Conta que, quando Vargas foi deposto, a Direção do PCB deu o comando a suas células que resistissem: “durante toda a noite, transportei camaradas de um lado para o outro da cidade. Na última, já às quatro horas da manhã, levava um mulato alto, da célula, com um revólver embrulhado num jornal, para o centro da cidade. Deixei-o na Glória, dei-lhe algum dinheiro e voltei para a minha célula”. Já em 1947, quando o Partido entrava novamente na ilegalidade, Diógenes Arruda encontrou-o por acaso na Avenida Beira-Mar, no centro: “Pega as faixas e vai ajudar a preparar o comício”. O arquiteto lançou-se à tarefa com outros camaradas, instalando faixas no Castelo, apenas para ver as viaturas policiais recolhendo todas. Não houve comício algum, claro.
Um arquiteto comunista a serviço do nacionalismo democrático
A partir de 1948, ao ser convidado para palestrar em Yale, o arquiteto descobre que os Estados Unidos não mais concederiam visto de entrada ao comunista – uma restrição que persistiria pelas décadas em que aquele país viveria o auge do macartismo. Mais tarde, Niemeyer ironizaria: “vocês sabem que isso até me agrada? Se depois de 20 anos vocês recusam meu visto outra vez, é sinal de que continuo o mesmo”. Em 1971 quando alguém mais graúdo finalmente consegue fazê-lo retornar e conhecer a sede cujo projeto Harrison desenvolvera a partir do seu estudo, faz questão de assinalar à imprensa estadunidense: “estou contente de visitar este prédio para o qual colaborei como arquiteto e, mais ainda, sabendo que hoje entra para a ONU a China Comunista”.
Niemeyer só conheceria a Europa em 1954, quando aproveitaria também para uma visita à capital da União Soviética. Moscou não o decepciona: “com que prazer transitamos pela Praça Vermelha, surpresos com a monumentalidade do Kremlin e a graça desenvolta da catedral de São Basílio com suas abóbadas douradas! Com satisfação sentíamos o povo se recuperando, a vida a caminhar dentro dos preceitos de Marx e Lênin, fraternal e justa para todos”. A admiração, claro, era recíproca. Em 1963, Niemeyer receberia o Prêmio Lênin da Paz outorgado pelos soviéticos.
No Brasil, por outro lado, o principal mecenas do arquiteto era um governante que, se não era conservador, estava longe de ser revolucionário. O mineiro Juscelino Kubitschek. O político mineiro se valera do talento do arquiteto carioca desde sua passagem como prefeito biônico de Belo Horizonte, a partir de 1940, quando da realização da Pampulha. Ali Niemeyer se tornaria conhecido internacionalmente graças a sua participação com aqueles edifícios na exposição Brazil Builds do Museu de Arte Moderna de Nova York em 1943.
Com JK governador (1950-1955), a parceria se intensificaria em obras tão diversas quanto o gigantesco conjunto Governador Kubitschek (1951) ou uma pequena escola em Diamantina (1951). Por fim, com a epopeia da construção de Brasília entre 1957 e 1960 – e por todas as décadas seguintes – Niemeyer se firmaria não apenas como o maior arquiteto brasileiro de todos os tempos, mas também como um dos maiores do mundo no século 20.
Seu envolvimento com a burguesia nacional tinha relação não apenas com sua extração social privilegiada – era neto de um ministro da Suprema Corte e descendente de militares teuto-portugueses imigrados no início do século 19. Não se pode desprezar ainda seu início de carreira junto ao já mencionado grupo político conservador de Minas Gerais. Sua simbiose com JK porém parece se encaixar bem numa certa política etapista do PCB cuja expressão mais clara se encontra declaração de março de 1958. Para os comunistas organizados no partido naquele momento em que o partido novamente voltava à legalidade, a burguesia nacional e o regime então vigente poderiam ter um caráter progressista anti-imperialista, ensejando a formação de uma “frente única” para a “luta por um governo nacionalista e democrático”.
O risco universal do revolucionário
Havendo atingido o ápice de sua carreira na construção da Capital Federal, era natural que Oscar Niemeyer como qualquer um de sua estatura profissional, se dedicasse preferentemente a encargos em outros países. A partir de 1961, iniciaria um ciclo de viagens e estadias prolongadas no exterior de aproximadamente duas décadas. Primeiro alternando períodos no Brasil e no Líbano, Israel, Europa e Argélia. Em seguida, a partir do início da década de 1970, fixando residência em Paris.
Se a burguesia europeia aproveitou a oportunidade de usufruir do talento de Niemeyer – caso das diversas sedes de empresas projetadas na França ou na Itália naquele período – também o fizeram os camaradas Georges Marchais, Georges Gosnat ou Roland Leroy do Partido Comunista Francês (PCF), bem como o governo cada vez mais socialista de Houari Boumédiène na Argélia. Muitos se valeram da simplicidade inventiva de seu traço para dar forma construída a seus projetos políticos.
Assim, por exemplo, o brasileiro realizaria em 1962 a sede da Feira Permanente do Líbano, em Trípoli; em 1964 em Israel projetaria os conjuntos urbanos Nordia, Panorama e Negev, construindo a Universidade de Haifa; em 1965 construiria a sede do PCF em Paris e mais tarde a sede de seu jornal, o L’Humanité em Saint Denis (1987). Em Constantine, na Argélia, realizaria em 1969 uma enorme universidade, além da Mesquita de Argel – não construída. São dezenas de obras representativas da expansão da genialidade do brasileiro pelo mundo.
Esse cosmopolitismo o tornou próximo não apenas de comunistas intelectuais como Jean-Paul Sartre, Pablo Neruda ou André Malraux, mas também de revolucionários como o já mencionado Boumédiène ou Fidel Castro – que em 1992 afirmaria ser Niemeyer “o último comunista do Brasil”. Sua grande referência política, em todo caso, seria sempre Luís Carlos Prestes. Em seus escritos autobiográficos, sempre menciona com proximidade figuras históricas do Partidão como Agildo Barata, Nelson Werneck Sodré, Astrojildo Pereira. No campo da militância, acompanharam-no nessa nova fase Marcos Jaimovich, Heron de Alencar, Renato Guimarães (proprietário da editora Revan, pela qual Niemeyer publicaria todas as suas obras), Ubirajara Brito e muitos outros.
Agruras da luta
É claro, nem tudo eram glórias e afetos nessa trajetória política revolucionária. Se por um lado Niemeyer nunca foi preso, por outro lado passou por diversos constrangimentos, represálias, boicotes e interrogatórios devido a seu posicionamento abertamente comunista. Já em 1948, tem seu projeto do Centro Técnico da Aeronáutica – vencedor de concurso público – temporariamente anulado “por razões de Segurança Nacional”; em 1953, o reitor Ernesto Leme interdita a docência do arquiteto como professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP; em 1965, seu projeto para o aeroporto de Brasília é engavetado como forma de represália política do brigadeiro Castro Neves, que declara que “lugar de arquiteto comunista é em Moscou” – isso para não falar da já citada recusa do visto de entrada nos Estados Unidos.
Mesmo com a abertura do regime, em 1981, os militares tentam barrar a escultura em homenagem a Juscelino Kubitschek em frente ao Memorial JK projetado pelo arquiteto, pois pareceu-lhes uma foice e martelo em pleno eixo monumental – e talvez fosse mesmo. São muitas passagens tristes, sobretudo a prisão e morte de amigos, como Mauro Vinhas, que se suicida após uma batida policial na redação da revista Módulo, que Niemeyer dirigia. Uma conhecida anedota se dá quando, no primeiro ano da construção de Brasília, o general Amauri Kruel o convoca para depor no Departamento Federal de Segurança Pública. É levado à sala almofadada onde fazem as perguntas usuais sobre o PCB, concluindo: “O que vocês pretendem?”. Niemeyer não titubeia: “mudar a sociedade”. O policial dirige-se ao auxiliar: “Escreva aí: mudar a sociedade”. O rapaz se volta ao interrogado e comenta fazendo uma careta: “vai ser difícil…”.
De volta ao Brasil na década de 1980, depois de passar por tantas agruras, Niemeyer permanece no PCB, como sempre, mas parece desconfortável com os rumos que o Partido vinha tomando. Em 1987, participa do VIII Congresso, e se queixa de ver poucos de seu tempo, como Salomão Malina, Geraldo Rodrigues dos Santos (o “Geraldão”) ou Nelson Werneck Sodré. Relata que “a reunião prosseguia e, de quando em quando, um mais exaltado levantava aos gritos uma palavra de ordem. E todos o seguiam de pé, com o punho fechado, numa atitude de luta declarada. Constrangia-me acompanhá-los, sentia uma contradição com a linha conciliatória que o Partido adotara”.
“Enquanto existir miséria e opressão, ser comunista é nossa decisão”
Diante da queda iminente da União Soviética, em junho de 1991, os grupos ditos “renovadores” assumem o poder no PCB e preparam sua tentativa de liquidá-lo por meio de uma transformação num partido social-democrata. Niemeyer se coloca frontalmente contra o movimento, mandando imprimir um cartaz com uma mensagem contundente “aos companheiros delegados do IX Congresso do PCB”, com fundo amarelo e uma seta negra esmagando um corpo morto sobre uma poça de sangue. Manuscrito, o recado: “Enquanto existir miséria e opressão, ser comunista é nossa decisão”.
De fato, com o golpe dado em 1992 e a transformação da legenda em PPS, o arquiteto se junta a diversos outros militantes antigos no Movimento Nacional em Defesa do PCB, assumindo a Presidência de Honra do Partidão durante aquele difícil momento, em que os comunistas só obteriam novo registro em 1995, após sentença favorável do Supremo Tribunal Federal (STF) pelo direito ao uso da sigla histórica pelos militantes históricos do Partidão.
Niemeyer ficou perplexo com o desmantelamento do mundo comunista. “Sentia que minha posição política não correspondia ao que se passava no país e no mundo. Que muitos aceitavam a derrota como consequência de velhos e irreparáveis erros e outros, tranquilamente, não raro como coisa desejada”. Em todo caso manteve a combatividade e a fé no processo dialético da história, segundo o qual as contradições do capitalismo hão de se expressar nos sujeitos e organizações capazes de levar a seu fim, dizendo ter recusado tudo: “passei a considerar que a crise soviética constituía uma fase natural na luta política, que o ser humano não atingira ainda o nível que a sociedade comunista, solidária, exigia. E me refugiei na ideia de que o progresso promovido pela Revolução de Outubro, que transformara a União Soviética, de um simples país de mujiques na segunda potência mundial, fora extraordinário. E isso me bastava”. Aquela brutal desarticulação seria certamente “algo que os velhos comunistas soviéticos saberiam eliminar”.
Naqueles tempos de infelizes mudanças, falece Prestes em 1990 – desligado do PCB há dez anos por motivos parecidos aos que desanimaram Niemeyer. No mesmo ano, o arquiteto projeta em Porto Alegre, cidade natal do líder revolucionário, um Memorial em homenagem a ele. A obra não é construída. Niemeyer não esmorece. Em 1992, realiza um projeto para a Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, que acabaria sendo construído em Palmas, no Tocantins, como Memorial da Coluna Prestes – o mesmo motivo de outro monumento do arquiteto na cidade missioneira de Santo Ângelo, realizado em 1995.
Ao completar 100 anos, em 2007, Oscar Niemeyer elaborou um estudo para o Memorial Luís Carlos Prestes na capital do Rio Grande do Sul. Um edifício cilíndrico cortado por uma parede vermelha diagonal que atravessa com um pórtico uma rampa serpenteante de entrada. Uma “cunha vermelha” suprematista cortando a história. O arquiteto faleceria em 2012 sem ver a obra pronta, que em todo caso seria inaugurada na Praia de Belas em 2017: um edifício, um ponto de reunião, um memorial que simboliza não apenas a trajetória revolucionária do “Cavaleiro da Esperança”, mas também de seu Partido, e do arquiteto que o concebeu.
Ferreira Gullar certa vez sintetizou de modo feliz: “com seu traço futuro Oscar nos ensina que o sonho é popular”. Os duros caminhos percorridos pelo partido e pelo arquiteto centenários mostram que a talha desse sonho na realidade é dura e envolve sempre luta. Estamos de volta a Copacabana na década de 1980, Niemeyer algo culpado em seu escritório na cobertura do edifício Ypiranga, conversa com seus amigos sobre os possíveis desdobramentos do entrevero com Tavares, que lhe retrucara um murro em pleno restaurante Nino. O cronista, treinador de futebol e comunista João Saldanha dá ao arquiteto uma lição de dialética capaz de fazer inveja a Hegel: “Se for de revólver, atira para baixo, porque o tiro levanta a pontaria”.
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