Poesia de Salão e Poesia Popular

Poesia de Salão e Poesia Popular

Por: O Poder Popular ·

Por Valter Mateus Vidigal e Jeferson Garcia são militantes do Coletivo Negro Minervino de Oliveira e do Partido Comunista Brasileiro, célula de Maringá.

Dessa vez, arriscaremos dizer que entre todos os poetas e suas inúmeras correntes e tradições, existem dois tipos principais, que por vezes até podem usar as mesmas técnicas ou se inspirar nos mesmos autores, mas terão posturas bem diferentes em relação ao mundo que os cerca. Chamaremos eles de poetas de salão e poetas populares. Em nosso chão, não é possível entender os caminhos dos poetas brasileiros sem compreender a formação social desse país e o desenvolvimento intelectual por aqui. Engana-se quem pensa que três séculos de escravidão, junto a outros dois de modernização conservadora não influenciaria a forma em que escrevemos, recitamos e nos enxergamos enquanto povo brasileiro. Mas esse desenvolvimento será feito em outro momento. Aqui, iremos nos deter diretamente ao tema central.

O poeta de salão, termo que aqui pegamos emprestado de Carolina Maria de Jesus, é o poeta que pensa e escreve segundo os valores das elites econômicas e políticas de seu país, pouco importando se ele próprio é oriundo delas. Contraditoriamente, ele se orgulha por supostamente não ter quaisquer convicções políticas, inclusive se vendo como acima da ideia de se ter uma. Ele conhece pouco ou nada do Brasil, assim como dos problemas e dilemas de sua cidade, mas domina as escolas e figuras de linguagem de sua tradição, se refestelando com métricas e metáforas que reafirmem o seu gênio-individual. Ele não quer enfrentar nada, nem ninguém, pois sua poesia, diz ele ou ela, não quer ser panfletária e mais vale falar das orquídeas de um jardim inexistente do que de um bairro com esgoto a céu aberto.

Conseguindo algum destaque entre os demais, sua poesia se torna a porta voz do senso comum ou até mesmo a propaganda do projeto político dessa elite, como foi “O fardo do homem branco”, de Rudiyard Kipling, para o imperialismo inglês, ou “Canção da Polícia Militar”, de Guilherme Almeida, ainda o é para a nossa repressão policial. Em outras palavras, seu canto brota da realidade aos olhos de sua classe social. Ele pode adorar falar do mundo, de Paris ou de Londres, da natureza e do amor, mas a realidade nacional, que escorre no suor dos despossuídos, não inspira seus versos.

Para nós, é evidente que toda e qualquer arte deve ser entendida na totalidade social, pois ela -assim como o poeta- é expressão dessa totalidade. O modo de formação da nossa intelectualidade nacional se relaciona com a imagem de país que nossos poetas têm e isso aparecerá em sua poesia. Mas o poeta de salão se vangloria por ser distante da política, sem vínculos, bandeiras, comprometido apenas com o refino técnico de seu trabalho e um maior acesso aos espaços e símbolos de prestígio que a classe dominante talvez lhe conceda. Mais do que uma “arte pela arte” - no sentido de negar o utilitarismo capitalista que tanto poda a nossa humanidade, sua “arte pela arte” se baseia numa postura ativa de fechar os olhos para os privilégios e elementos concretos que permitiram com que ele chegasse até ali, seja o fato de residir no centro de uma grande cidade, ou não ter que limpar a casa e preparar a janta.

É bem verdade que a poesia por ela mesmo tem sua importância , uma vez que existem momentos distintos em nossa vida que exigem leituras e sensações diferentes. Por isso, até mesmo a poesia mais distante da realidade, assim como um filme, ou uma música, se faz necessária para o descanso, um momento de desvio dos carros acelerados, das buzinas, das contas a pagar. É um pequeno momento de alívio e fuga, uma busca de leveza, uma evasão por vezes imprescindível. O mesmo se dá para quem escreve, mas também imagina, se apaixona e sofre - e como nos ensinaram os poemas de Lila Ripoll ou Pedro Lemebel, nem toda dedicação à intimidade é individualista. Todavia, é a predominância ou exclusividade dessa característica, dentro e fora da poesia, que demarca a conduta do poeta, visto que o mesmo será reconhecido por aquilo que escreveu e predominou em seus versos. Nesse sentido, o poeta de salão nem sempre faz uma apologia direta ao regime da vez. Ele pode gostar mais de cultivar a própria intimidade, de maneira individualista, ou em muitos casos atuais, escrever versos que parecem muito com livros de autoajuda. Isolado em seu palanque, nada do que escreve tem relação com os problemas da cidade ou da nação, de seu povo ou de sua identidade social.

Sua poesia é, sem vergonha alguma, um estímulo à abstenção. Foge da miséria e quando a menciona, a trata como algo natural, eterno, inerte à “ nossa condição humana”, assim como a guerra ou a escravidão, que são para ele temas ultrapassados. Portanto, melhor falar de um amor utópico, de lugares oníricos, de sujeitos não típicos ou mulheres que só se vê em revistas. Quanto mais fugir da realidade, melhor. Ele pode ser um mestre em português e gramática, do tipo que fala inglês desde pequeno e gosta de filmes franceses, mas também pode ser um cantor sertanejo que dedica seus acordes para a exaltação do Agronegócio, enquanto parasita os recursos destinados à cultura de uma cidade pequena. Ele pode ser um vice-presidente golpista, tentando se escorar nos poetas do passado, como forma de inflar o próprio ego, assim como pode ser apenas mais um empreendedor de um ativismo performático. Em qualquer uma das opções, ele acaba sendo um grande intelectual tradicional, como diria Gramsci.

Muitas vezes ele participa de uma transgressão resignada, fazendo críticas ao mundo e à humanidade de forma abstrata. O fogo queima, mas as mãos sujas do isqueiro não aparecem. Massacres acontecem com povos indígenas, como o massacre dos Ticuna, mas posseiros e madeireiros nunca são nomeados culpados. O poeta de salão não gosta de política e nem de quem fala dela, embora muitos não tenham problemas em apertar as mãos do prefeito ou ganhar algumas medalhas militares, porque essa parte da política lhes convém. Não há alternativa; a solução é transgredir e negar, mas de forma cômoda e passiva. Preciso parecer me importar com os temas da época, com mulheres, negros e indigenas, mas não muito, a ponto de ir às raízes das contradições desses grupos em minha escrita e, assim, correr o risco de perder os acessos que alcancei até agora . É uma poética sem ideologia, pois ideologia é como mau hálito, sempre na boca dos outros. Não é coincidência que muitos deles venham a ser homenageados com nomes de ruas, escolas ou prêmios literários. Se o conteúdo e a postura do poeta tem relação direta com a classe social a que o mesmo se situa ou almeja alcançar, é evidente que eles influirão no quanto o seu trabalho será aceito e absorvido ao modo de produção atual.

Mas e quanto ao poeta popular? O que sobra pra ele?

Distante das altas prateleiras do prestígio pequeno-burguês, o poeta popular - que na maioria dos casos é um poeta de luta - sabe que por muito tempo os sapatos foram um luxo desconhecido para grande parte dos brasileiros e latino-americanos, como diz a poesia. A miséria cultural reserva toda “cultura” para os fundos de uma igreja num bairro pobre, onde muitas vezes se bebe a água do fascismo. Por isso ele anda por todos os caminhos, buscando a história e a memória viva do povo. Negros, indígenas, mulheres, gays, trans, pessoas com deficiência, bolivianos, venezuelanos, mineiros, agricultores, assentados, enfim, as dores e os amores típicos, de sujeitos típicos. Assim nascem “Te recuerdo Amanda”, de Victor Jara, “Gritaram-me negra”, de Victoria Santa Cruz, “Tem gente com fome”, de Solano Trindade, “Mulher”, de Linn da Quebrada, ou “Iracema Tabajara”, de Auritha Tabajara. Essa poesia que planta suas raízes na cultura e memória popular, na vida do povo e do país, é a poesia popular, numa alusão ao que Victor Jara chamou de “canções populares”, ao invés das “canções de protesto” de sua época.

Ela abre os olhos e vê. Vê os condenados da terra, os desfavorecidos, as injustiças sociais e suas causas, e tudo isso sem perder de vista a si mesmo, pois a poesia popular não se limita ao poema, naquilo que está escrito ali, mas é a manifestação de toda obra do poeta, dentro e fora do livro. Sendo assim, ele pode falar sobre suas memórias da infância, suas paixões não correspondidas, seu vínculo com a terra natal ou mesmo as coisas que ele deseja e ainda não têm nome, como disse Clarice Lispector em “Perto do Coração Selvagem”, de 1943. Artistas, como qualquer outra categoria de nossa classe trabalhadora, possuem e demandam uma pluralidade de temas e perspectivas sobre o mundo, mas o que diferencia os populares dos de salão é a tomada de posição sobre o mesmo. Se ela irá se manifestar sob versos incendiários, militância partidária, criação e construção de espaços culturais ou participação em manifestações contra o retrocesso de nossas lutas, é a história que dirá.

Nesse ponto, também percebemos como a coletividade costuma transcender a temática para se tornar forma de se pensar e produzir essa poesia. Para além de seu conteúdo provocador, a “Poesia Marginal” dos anos 70, por exemplo, foi muito marcada pelo uso de mimeógrafos e da coloquialidade como forma de pautar a independência artística e a democratização da poesia como um todo, num tempo onde isso era violentamente negado. Em El Salvador, tivemos a “Geração Comprometida”, que nos anos 50 produziu nomes como Roque Dalton e Otto René Castillo, e fazia questão de denunciar de todas as formas possíveis as ditaduras e a miséria que o povo da América Central sofria, alguns levando esse enfrentamento ao nível da guerrilha. E se analisarmos os primórdios do Movimento Hip Hop, que em 2023, completou 50 anos, veremos como o descarte dos soundsystems por parte da classe média americana foi um dos elementos que permitiu com que toda uma geração de jovens negros e latinos tivesse acesso a meios de produzir sua arte, inicialmente como diversão e posteriormente como um instrumento de luta. No que chamamos de poesia popular, é perceptível a necessidade de se criar uma arte que de fato converse com a realidade de grupos ou parcelas inteiras de uma população que a academia e o Estado ignoram, como também é o caso dos nossos cordéis nordestinos, que desde o século XVIII foram desenvolvendo uma métrica, rima e contação de história próprias, além de terem nos entregue poetas do calibre de Patativa do Assaré, recentemente inserido pelo Senado Federal no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.

O poeta popular expressa seus sentimentos e a maneira como vê o mundo, sem se colocar à margem dele, mas pelo contrário, negando as atuais formas de se viver o cotidiano, apontando os caminhos do futuro como quem aponta estrelas sem medo das verrugas. Tal como fez Roque Dalton ao sugerir uma aspirina para as dores de cabeça de nossa época. Ele narra os feitos dos grandes nomes da história do povo, sem esquecer das pequenas trivialidades que também nos tornam quem somos. É um apaixonado pelo seu povo, seu folclore e seus mitos. Seu texto poético revela os sentimentos dos personagens, mas principalmente o dos sujeitos típicos de uma época. Uma poesia, portanto, que busca fugir do elitismo, do culto à própria personalidade e do intimismo[1] e se liga aos interesses do povo e da nação, como um poeta palestino que procura o seu coração perdido em meio aos escombros de Gaza, como a poeta Heba Abu Nada, pois falando de seu povo ela se encontra nas palavras, como em o “Diário da tristeza” comum, de Mahmud Darwich. Esta é, em suma, o que chamamos aqui de poesia popular. Toda poesia é política, em alusão ao que diz Jeff Vasques, mas nem toda poesia é popular ou de luta. Não existe poesia inocente, nem poeta.

No entanto, ressaltamos que até o poeta precisa ser formado, e aqui não nos referimos aos títulos acadêmicos ou ao número de livros que ele já leu ou escreveu, mas sim ao processo lento, doloroso e coletivo de rompimento da lógica burguesa que todos enfrentamos quando os primeiros germens da contestação florescem em nossa consciência e na ponta de nosso lápis. Do nosso lado da trincheira, todos queremos acreditar que nossa voz e caneta representam os interesses de nossa classe e nosso povo, mas de que forma estamos representando? A quem estamos expondo nossas cicatrizes? E o que realmente estamos propondo para os nossos? Mais do que uma simples identificação, é a busca por essas respostas, armas e caminhos que o poeta popular se forma.

E eles não são poucos. Na verdade, há milhares de artistas que, embora não tenham se organizado politicamente, seja por uma falta de acesso, uma incipiência da esquerda local ou por precisar dar prioridade ao trabalho artístico como forma de garantir sua subsistência, ainda assim deram contribuições fundamentais para o avanço da nossa consciência racial, de gênero e de classe. Se analisarmos a trajetória de nossos maiores lutadores negros da atualidade, veremos como o samba, o funk, o rap, o sarau e o Slam foram cruciais para a formação crítica de sua militância, ainda que muitos desses artistas denunciem a marginalização do negro pós-abolição sem nomeá-la “massa marginal”, como o fez Clóvis Moura. Quem diz que “Sobrevivendo no Inferno” foi seu primeiro livro de sociologia não está exagerando, e nesses tempos de maré baixa, precisamos nos atentar a como tem se dado a luta de classes nos diferentes becos e vielas da América Latina, onde nossas análises de conjuntura não têm alcançado.

Por fim, lembremos que as ideias dominantes de um país não precisam transformar o poeta em um propagandista ou um apologeta direto, basta conduzi-lo a optar por interesses e temas neutros, pessoais e individuais, tal como a ordem individualista apregoa em todas as instâncias da vida e os fazerem referências a serem seguidos, financiando-os, divulgando-os, tal como fez a CIA e o Departamento de Estado dos EUA com várias obras de uma chamada esquerda não comunista durante o século XX. Em regra, a maioria desses poemas são apologéticos à ordem, uma vez que afastam seus versos das contradições e dilemas da vida, da realidade. Daí a necessidade de também nos armarmos com as ferramentas subjetivas que historicamente nos foram negadas, como forma de construir uma alternativa popular, tanto na poesia como na luta de classes. Essa alternativa pode começar com a denúncia do fascismo e do imperialismo americano, mas também pode ser de uma praça onde os MCs da sua cidade batalham, mas ainda não conseguiram um banheiro e uma iluminação adequada. As opções são infinitas, mas a luta é uma só.

...o mais provável é que continue escrevendo
contos não neutros
e poemas e ensaios e canções e novelas não neutras
mas aviso que será assim
mesmo que não tratem de torturas e prisões
ou outros tópicos que ao que parece
tornam-se insuportáveis para os neutros

será assim mesmo que tratem de borboletas e nuvens
e duendes e peixinhos”

Sou um caso perdido”, por Mario Benedetti.

[1]: Aqui se vale do conceito tal qual trabalha Carlos Nelson Coutinho, em Cultura e Sociedade.

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