Quem tem medo do comunismo?

Quem tem medo do comunismo?

Por: O Poder Popular · Punho cerrado, o martelo e a foice são símbolos globais do comunismo e do socialismo - Crédito: AFP
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Por Gislaine Oliveira - Professora universitária, feminista e militante do PCB no Ceará

Quando eu era pequena não gostava de salada. Tinha verdadeiro asco. Não entendia como algumas pessoas diziam que sentiam vontade de comer aquilo. Isso porque, pra mim, salada era única e exclusivamente aquela mistura de alface murcho, tomate, cebola, vinagre e sal que a minha mãe, que também não gostava de salada, fazia. Só depois que saí de casa, mudei de estado, conheci outros jeitos de comer legumes e verduras é que eu entendi que eu gostava de salada. E pior, era das pessoas que sentiam vontade de comê-la. Foi quando eu entendi que havia misturas que combinavam mais, diversos tipos de molhos, saladas quentes e frias, só depois de ter desfeito aquela imagem fixa que guardava da infância é que eu entendi que “salada” tinha muitas configurações disponíveis.

Do meu ponto de vista, essa mesma resistência em entender o que é o comunismo explica parcialmente porque 44% dos brasileiros têm “receio da implantação de um regime comunista no Brasil”, de acordo com uma recente pesquisa Ipec. Afinal, num país em que quase 60% da população vive em insegurança alimentar, a perspectiva de uma mudança radical no sistema em que vivemos deveria ser uma esperança, não um medo. Assim, como é possível tentar explicar a origem dessa resistência, desse pavor? Como todo problema complexo, não há apenas uma explicação, mas alguns caminhos que levam a isso.

O primeiro que gostaria de chamar atenção é a amplamente difundida propaganda anticomunista. Essa ganhou força com a campanha eleitoral do último ex-presidente – aquele que fugiu para os Estados Unidos. O engano está em achar que ela nasceu aí. A conservação de um mundo capitalista pressupõe a manutenção e a exaltação constantes de uma ideologia que, a todo tempo, nos enlace na ideia de que esse é o único sistema possível, ainda que tenha lá seus desagrados. Não são poucas as produções Hollywoodianas em que as forças armadas / os super heróis / os espiões / ou quem quer que seja que represente a liberdade capitalista sai numa jornada para combater um ditador comunista em um país do leste europeu. E essa propaganda anticomunista está ancorada num segundo ponto: o uso vazio de termos como liberdade, democracia, ditadura.

Eleitor brasileiro se fantasiou de “fantasma do comunismo” para votar em Lisboa nas eleições presidenciais do Brasil em 2022 – Crédito: r/brasil

É um entendimento equivocado do senso comum, baseado no discutido anteriormente, que comunismo é igual a ditadura e capitalismo, seu oposto, liberdade, democracia. Para ser curta e direta, trago uma fala bastante elucidativa do conceito de liberdade: “é a possibilidade de escolher entre alternativas concretas”, trazida a nós pelo camarada Zé Paulo Netto, a partir de uma perspectiva marxista. Repito: liberdade é a possibilidade de escolher entre duas alternativas concretas.

Usando da mesma analogia que o Zé Paulo usa na aula referenciada acima, eu pergunto a você, caro leitor: hoje você pode escolher concretamente entre viajar para Fernando de Noronha ou Ilhas Maldivas? Você tem essa liberdade econômica? Fazendo um exercício ainda mais cotidiano, você acha que nesse sistema econômico em que vivemos, com 60% da nossa população passando por insegurança alimentar, há possibilidade de escolher mesmo entre alternativas concretas? Você acha que o funcionário das Lojas Americanas terá o mesmo grau de liberdade e segurança financeira que o bilionário Jorge Paulo Lemann, um dos sócios da referida empresa, se ela fechar as portas? Que espécie de democracia é essa na qual os interesses da classe trabalhadora, do povo, não estão em primeiro lugar?

Ainda há, como parte da propaganda que fomenta o desconhecimento e o medo do comunismo, a ideia de que este “não deu certo” e o capitalismo sim. Nesse ponto convido a uma reflexão fundamental: na sua perspectiva, o que é um país que deu certo? Acredito que um país que “deu certo” não deve ter gente morando na rua, nem pessoas passando fome, deve ter uma saúde pública gratuita e de qualidade para toda a população, um sistema de justiça realmente justo, em que as pessoas não sejam julgadas pela sua cor de pele e pelo seu poder aquisitivo. Esses são alguns itens básicos.

Pelas premissas acima, é impossível dizer que os Estados Unidos, país tomado como modelo quando se fala de capitalismo, deu certo. Seguem algumas razões:

Não somos naturalmente exploradores uns dos outros. Estamos assim, nos tornamos assim. De tal modo que, sim, podemos escolher cultivar uma outra humanidade e nos organizar com aqueles que querem esse mesmo horizonte, ou algo semelhante.

Eu poderia listar por horas a fio e trazer mil referências a respeito de como o capitalismo “não deu certo” e algumas pessoas me diriam que isso é a exceção, que essa não é a regra. Mas se realmente formos intelectualmente honestos e dispostos, vamos ver que é assim que essa máquina de moer gente trabalha. É preciso que se explore até a última gota de suor, até a última lágrima, até o último suspiro. É preciso que alguém, que muitos “alguéns” sejam explorados para que poucos lucrem, para que poucos alcancem o topo. E isso não nos é novidade, afinal já dizia o poeta: “é que o de cima sobe e o de baixo desce”.

Por outro lado, o que é que funciona nos países que almejam um horizonte comunista? Bem, uma comunista falando bem do comunismo é até óbvio. Então deixo apenas uma declaração do jornalista Ricardo Amorim, conhecido defensor ferrenho do modo de vida capitalista. Numa tentativa de criticar a pequena ilha de Cuba, que sofre há anos o embargo comercial do mundo por pressão dos Estados Unidos, Ricardo disse que “em Cuba só tem três coisas que funcionam: é a segurança, é a educação e, exatamente, a saúde”. Pergunto a você: precisa de mais?

Faz parte ainda dessa ideologia a ideia de que o comunismo é utópico e que a mudança é impossível. Nos falta, aqui, perspectiva histórica e, novamente, não é nossa culpa. A ideologia dominante, capitalista, nos leva a pensar que essa é a única possibilidade de viver, que é quase “natural”. Não é. Não somos naturalmente exploradores uns dos outros. Estamos assim, nos tornamos assim. De tal modo que, sim, podemos escolher cultivar uma outra humanidade e nos organizar com aqueles que querem esse mesmo horizonte, ou algo semelhante.

Finalmente, há a ideia fixa de que há apenas um modelo de comunismo. Origina-se de um ideário repleto de má informação sobre a maior experiência socialista do mundo, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Não tenho, aqui, intenção de desfazer o sem-número de desinformação sobre essa experiência. Faço diferente, te proponho a pensar: a experiência capitalista que temos no nosso país, é igual à vivida na França? Na África do Sul? Na Nova Zelândia? Não, né? Então por que, necessariamente, todas as experiências socialistas serão iguais, terão os mesmos desfechos, os mesmos problemas?

Fundadores do Partido Comunista do Brasil (PCB) – Crédito: Reprodução

É processo, não evento.

Cada país tem um contexto histórico, tem relações internas, tradições dos seus povos, feridas a sarar. É preciso compreender, portanto, que qualquer mudança estrutural terá que lidar com questões específicas de uma realidade específica. É preciso ter a maturidade de entender que essas mudanças não serão uma retirada instantânea das mazelas da sociedade, e que qualquer nova direção terá a marca da estrutura que passou. É processo, não evento. Por isso não dá para “implantar um regime comunista” por um decreto ou algo que o valha.

Estamos imersos na sociedade do imediato, da recompensa imediata e individual. Sendo assim, como vamos imaginar a possibilidade de construir outro futuro possível? Se temos que trabalhar de 14 a 16h por dia, como vamos ter tempo de imaginar, energia para imaginar? Tem que ser uma decisão. E tem que ser organizada com semelhantes a nós, pois, de outro modo, entramos apenas em sofrimento por finalmente enxergar a profundidade do problema.

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