Roque Dalton: o poeta que subiu as montanhas

Roque Dalton: o poeta que subiu as montanhas

Por: O Poder Popular · Roque Dalton, por Vicente

Por Jeferson Garcia - Membro da Coordenação Nacional do Coletivo Negro Minervino de Oliveira

Há 48 anos, em outro Maio, era assassinado em El Salvador um dos maiores poetas de luta da América Latina

“Roque Dalton, aluno de Miguel Mármol no ofício muito salvadorenho de ressuscitar, se salvou duas vezes de morrer fuzilado. Uma vez se salvou porque caiu o governo e outra vez se salvou porque caiu a parede, graças a um oportuno terremoto que permitiu que fugisse. Também se salvou dos torturadores, que o deixaram destroçado mas vivo, e dos policiais que o cobriram de balaços. E se salvou dos antipáticos do futebol que o botavam pra correr a pauladas, e se salvou das fúrias de uma porca parida e de numerosos maridos sedentos de vingança. Poeta profundo e brincalhão, preferia arriscar a pele a se levar a sério, e assim se salvou da solenidade, da grandiloquência e de outras enfermidades que gravemente acometem a poesia política latinoamericana.

Não pode se salvar de seus companheiros. Com pena de morte castigaram sua discrepância, por ser a discrepância delito de alta traição.

Dalton não se salvou da bala que veio do seu lado.”

Eduardo Galeano

Me parece que para nós, latinoamericanos, chegou o momento de estruturar o melhor possível o problema do compromisso. No meu caso particular, considero que tudo que escrevo está comprometido com uma maneira de ver a literatura e a vida a partir de nosso mais importante labor como homens: a luta pela liberdade de nossos povos

Roque Dalton1

Nossos mortos são gigantes. Era 10 de maio de 1975, Saigon havia caído decretando a derrota dos EUA no Vietnam de Ho Chi Minh. O império português desmoronava em Cabo Verde e Moçambique. Pela luta armada, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) venceu as Forças Armadas de Portugal. As tentativas revolucionárias na América Latina fracassavam na Guatemala e na Bolívia. A luta de classes incendiava o mundo e a luta popular contra o imperialismo se irradiava pelos países do terceiro mundo e da América Latina.

É nessa conjuntura que perdemos um dos nossos gigantes. Poeta dos tristes mais tristes do mundo, os sempre suspeitos de tudo, que ele considerava seus compatriotas e irmãos. Um dos maiores poetas da América Latina descansava em casa quando antigos camaradas do Exército Revolucionário do Povo (ERP) visitaram-no para dar fim a sua poesia, munidos de uma lista de acusações: traição, insubordinação, de ser um agente da CIA infiltrado e da polícia secreta do país. O poeta foi fuzilado com balas e mentiras. Até hoje seu corpo não foi encontrado.

Naquele dia, há 48 anos, a poesia que subiu à montanha1 se calou, em luto, por um dos seus mais importantes representantes2. Roque Dalton (1935-1975), foi assassinado há quatro dias de completar 40 anos, graças às mãos de Joaquín Villalobos e outros nomes. Villalobos, inclusive, que foi um de seus carrascos detratores, fez autocrítica anos depois – Roque era inocente das acusações. Porém, como a maioria das autocríticas que rondam por aí, foi insuficiente. Suas palavras não trariam Dalton de volta.

A trajetória de Dalton tem como ponto de virada os seus meses na Universidade do Chile, em 1953/54. Lá, aos 18 anos, Roque Antônio Dalton García encontrou-se com o marxismo, enquanto conduzia seus estudos em direito. Triste, embora contente, ao tomar consciência da realidade, Roque perdeu ali suas ilusões, que se espalharam como folhas secas pelas ruas de Santiago. Descobriu, tardiamente, que muitos daqueles amigos e colegas com quem ele convivia ali eram militantes comunistas: “me puse em contacto com los comunistas, tuve amigos comunistas, y al principio sin saber que lo eran”.

Aquele Cristão conservador, que havia feito sua formação escolar em escola jesuíta, transformava-se em um cristão à esquerda ou, nas suas próprias palavras, “um católico progressista”, que mais adiante abandonaria a fé em Deus. Nos 11 meses em Santiago, ele se deparou com a teoria marxista e com ela teve um casamento para toda vida. Foi ela, inclusive, que o ajudou a escrever em seus próprios versos o seu país, palavras preocupadas com a sua terra, o chão histórico que lhe deu origem, El salvador. O poeta nunca mais viu seu país da mesma forma, como se o olhasse pela primeira vez e descobrisse questões que nunca havia notado.  A partir de então, o jovem direcionou seus versos para a crítica da forma social capitalista e como essa atuava sobre os países da América Latina: “Eu acuso a propriedade privada / de privar-nos de tudo1.”

Em 1954, estava de volta a El Salvador e passou a atuar no movimento estudantil, na Associação geral de Estudantes Universitários (AGEUS) e no ano seguinte no periódico “El independiente” que cumpria o papel de um jornal crítico das condições histórico-políticas do país. Não se casou apenas com o marxismo, neste ano se uniu com Ainda Cañas, com quem teve três filhos. Em 1957 foi à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), um ano antes de iniciar sua militância no Partido Comunista de El Salvador (PCS), aos 23 anos de idade, no qual atuou até 1967/68. O comunismo, portanto, era o caminho que Roque encontrou para a resolução dos problemas que lhe saltavam aos olhos. Exemplo disso está reproduzido em versos em um de seus poemas:

SOBRE DORES DE CABEÇA

É belo ser comunista,
ainda que cause muitas dores de cabeça.
E é que a dor de cabeça dos comunistas
se supõe histórica, melhor dizendo,
que não cede ante às pílulas analgésicas
a não ser com a realização do Paraíso na terra.
Assim é a coisa.
Sob o capitalismo nos dói a cabeça
e nos arrancam a cabeça.
Na luta pela Revolução a cabeça é uma bomba relógio.
Na construção socialista planejamos a dor de cabeça
a qual não diminui, muito pelo contrário.
O comunismo será, entre outras coisas,
uma aspirina do tamanho do sol

Influenciado pelo Surrealismo, por Nicanor Parra, por Otto René Castillo, pela sua vida em Cuba, pela passagem pelo Chile, sua poesia era muito singular, seus poemas não eram apartados da realidade nacional e das dificuldades do povo de El Salvador. Carregava em seu caderno uma poesia que nasceu com o olhar posto na América Latina. Dizia que “a literatura, entre outras funções, cumpre a de ampliar os horizontes do homem”.

Neste aspecto encontramos um dos legados decisivos de Dalton. Sua obra é, sem sombra de dúvidas, uma tomada de posição sobre o próprio papel do poeta e da poesia. Cumprindo, literalmente, o que Pedro Tierra diria: há, para os poetas, um lugar na barricada. Por isso que sua poesia conversa com a própria escrita. Inúmeros são os poemas que poderiam ser chamados de metalinguísticos1, que falam da própria construção poética. Além de alguns registros de entrevistas em que o revolucionário de El salvador aponta esse sentido: “Una poesía que en lugar de cantar plantee problemas, plantee los conflictos, plantee elas ideias que son muchísimo más eficaces que los himnos para hacer que el hombre cobre conciencia de sus problemas en la lucha de Liberación de nuestros pueblos, por ejemplo2”.

Seus primeiros poemas são de 1956, publicados na revista Hoja e no periódico Diario Latino e são intimamente ligados a sua relação com outros escritores do Circulo Literario Universitario, do qual participou naquele ano. Sua poesia foi marcada pelo cárcere, pelos anos de exílio, pelo marxismo e, centralmente, pela luta política em El salvador. Mas como o próprio Roque comenta, foi a revolução Cubana que, com sua audácia revolucionária, colocou a poesia latino-americana em um novo momento histórico.

Sua poesia foi traduzida em diversos países. São mais de 10 livros de poemas, uma novela, peças de teatro, contos, resenhas e ensaios literários. Em 1958 publicou em El Salvador “Mía junto a los pajaros”, seu primeiro livro. O segundo saiu em 1961, no México, com o título de “La ventana en el rostro”.  Adiante, vários livros seus foram publicados em Cuba, onde trabalhou. Estes livros demarcam o caráter de sua poesia comprometida com suas raízes e com os temas caros à classe trabalhadora: amor, justiça, a propriedade privada, a vida do camponês, a terra, dentre outros.

Era crítico dos poetas de pavorosos bigodes, da poesia açucarada, que não diziam nada ou preferiam olhar para as rosas, a lua e demais frivolidades, ao invés de abrir os olhos e versos para aquilo que doía no povo, a realidade social e política, o sofrimento, a solidão de toda aquela gente abandonada à própria sorte. Dizia, em versos: “como pudestes cantar vergonhosamente/ as abstratas rosas e a lua brilhante/ quando se caminhava paralelamente ao litoral da fome1”. Com suas palavras tornou-se porta-voz de grandes inquietudes da classe trabalhadora, um dos “poetas combatentes2”, que aprendiam a filosofia e a “poesia do povo”, do estomago ao coração. Sua esperança estava neles: “creio no povo todo poderoso”.  E por isso, sua poesia não poderia estar alheia.

Em um de seus poemas de 1974 – Arte poética – Roque usa de seu deboche poético para dizer: “Poesia / me perdoe por ajudá-la a entender/ que você não é feita só de palavras”. Não à toa, Claribel Alegría3, grande amiga de Roque, afirmou que muitos de seus poemas são tão polidos e duros como um diamante. Faltou dizer que todo diamante nasce da exploração das burguesias locais, pela subordinação ao capital imperialista, pelo suor da classe que sofre na mineração em meio a exploração, sangue e lama. Todo minério se liga, na América Latina, com a miséria e o sofrimento do conjunto dos explorados. Nesse sentido, é possível comparar a poesia de Roque a um diamante, uma vez que ambos partem das mesmas contradições e nem todos brilham. Como diz a música: “E de onde vem os diamante? Da lama4”.

Inegavelmente, Roque foi um homem se sorte. Mesmo condenado a morte por duas vezes, conseguiu escapar. Ele tinha, como dizia Eduardo Galeano, o ofício de ressuscitar. Por suas atividades políticas e protestos, foi preso no governo de José Maria Lemus em 14 de dezembro de 1959 e um dia antes da sua sentença ser executada, em 26 de outubro de 1960, Lemus foi deposto. Dalton foi solto, então, no dia 07 de janeiro de 1960. Ao sair, exilou-se no México e em 1961 foi para Havana. Anos depois, ao retornar a sua terra natal, entre 1964-1965, Roque é preso novamente e torturado. Porém, mais uma vez o acaso se sentou ao seu lado com um presente em mãos: um terremoto derrubou as paredes de sua cela, o que possibilitou sua fuga. Naquele dia, Roque aproveitou uma procissão religiosa e se misturou no meio dos crentes. Sua história mostra que até os comunistas têm direito ao milagre.

Em 1972, novamente se exilou, dessa vez em Cuba, vivendo lá por um ano e trabalhando na rádio Habana, na Casa de las Américas e na União de escritores e artistas de Cuba. Além disso, Roque fez formação de guerrilha em Havana, preparando sua volta para El Salvador.

O poeta nasceu e morreu com os pés sobre a Ditadura e usou parte de sua vida para seu combate intransigente. Tomou lado nas lutas de guerrilha. Viu Che e Allende caírem. No poema “Maneiras de Morrer” tratou ironicamente dos que chamavam Che de aventureiro e deixou claro sua crítica a via pacífica ao socialismo e aos “os grandes pacifistas da via prudente”.

Roque tinha uma certeza: a revolução exigia poesia e luta armada. Por isso, atuou a partir de 1970 no ERP, até ser assassinado. Com Roque, aprendemos que é preciso audácia para construir novas relações humanas e elas necessitam da arte, pois “a poesia é como o pão, de todos”. Assim, é impossível cumprir seu pedido: “quando souber que morri não pronuncie meu nome1”. Desculpe, camarada, não há revoluções a surgir que não falem de Roque Dalton. Teu nome, assim como a poesia e o pão, estará na boca de todos.

Notas:

  1. As poesias de Roque Dalton podem ser encontradas na página https://eupassarin.wordpress.com que é organizada por Jeff Vasques.
  2. Diz Dalton: “cada um é livre para ir-se à montanha com sua poesia, suas efusões espirituais, seus amuletos. De fato, as unidades guerrilheiras transbordam de poesia”. Ir à montanha significa aderir a guerrilha, como fez seu amigo Otto René Castilho (na Guatemala), que Roque chamou de “poeta guerrilheiro”.
  3. Corroboro com o entendimento de que a poesia de Roque Dalton é uma poesia de luta, como vem debatendo Jeff Vasques. Esse caráter se deve não pelo conteúdo ou forma, mas porque o autor é um lutador, um militante pela causa da emancipação humana, o que eflete em sua poesia.
  4. Poema “Ata”.
  5. São os casos de “Como Cacto”, “Para que deve servir” e “por que escrevemos”.
  6. Vídeo pode ser encontrado na página @roquedalton75 no instagram, que consta com vários materiais da vida e obra do poeta guerrilheiro.
  7. Poema “Canto à nossa posição”.
  8. Ver poema “As novas escolas”.
  9. Poeta, novelista e jornalista de El Salvador.
  10. Música Negro Drama, dos Racionais Mc´s.
  11. Poema “Alta hora da noite”.

Referências:

ALEGRÍA, Claribel. Apresentação de Dalton por Claribel Alegría. p.6-17. In: DALTON, Roque. Cantos à nossa posição. Trunca Edições: Campinas, 2017. organização e tradução de Lucas Bronzatto e Jeff Vasques.

BRONZATTO, Lucas; VASQUEZ, Jeff. Prefácio dos tradutores, p.1-5. In: DALTON, Roque. Cantos à nossa posição. Trunca Edições: Campinas, 2017. organização e tradução de Lucas Bronzatto e Jeff Vasques.

DALTON, Roque. Cantos à nossa posição. Trunca Edições: Campinas, 2017. organização e tradução de Lucas Bronzatto e Jeff Vasques.

FERNÁNDEZ, Tomás e Tamaro, Elena.  Biografia de Roque Dalton. A enciclopédia biográfica online [Internet]. Barcelona, ​​​​Espanha, 2004. Disponível em https://www.biografiasyvidas.com/biografia/d/dalton_roque.htm [data de acesso: 2 de maio de 2023].

RAMIREZ, Carlos Fernando Arroyave. Cantar la Esperanza: Ernesto cardenal y Roque Dalton. Dissertação. Universidade Federal da Associação Latino-americana. 2016.

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