Uma crítica da ideologia do racismo

Uma crítica da ideologia do racismo

Por: O Poder Popular ·

Por Rian Rodrigues - Doutorando no PPGSS-UFRJ. Professor de Educação Física do Instituto Federal Fluminense e Coordenador do NEABI IFF Cambuci.

O racismo é para nós uma ideologia. O fato de a ideologia ter se tornado um dos conceitos mais polissêmicos que conhecemos, não impediu a consolidação de uma forte tradição teórica de tratar o racismo enquanto uma ideologia. A partir disso, iremos apresentar uma interpretação particular da ideologia, buscando o caminho traçado por Marx e Engels, para pensar sobre o racismo, o que chamaremos de ideologia do racismo. Se ideologia é expressão ideal de uma base material, o fundamento da ideologia do racismo só poderá ser encontrado em determinadas relações sociais de produção e reprodução da vida.

Introdução

O tema que nos interessa no presente artigo é o da ideologia do racismo ou, mais precisamente, a perspectiva analítica de um conjunto de autores e autoras; nacionais e internacionais; marxistas e não marxistas; contemporâneos ou não, que caracterizam o racismo enquanto uma ideologia. Nesse sentido, poderíamos citar as contribuições de Clóvis Moura, Frantz Fanon, Kabengele Munanga, Lélia González, Kwame Nkrumah, Silvio Luiz de Almeida e muitos outros. Contudo, nessa gama de autores e autoras, perpassam diferentes interpretações do conceito de ideologia, ainda que circunscritos àqueles que dialogaram com ou a partir da tradição marxista. Portanto, antes de avançarmos na análise da ideologia do racismo, apresentaremos uma breve síntese da concepção a qual fazemos uso. Sendo assim, partiremos do caminho traçado por Marx e Engels, sobretudo a partir das reflexões contidas na obra A ideologia alemã, escrita entre finais de 1845 e início de 1846. Em seguida, avançaremos para uma análise específica do racismo enquanto uma ideologia mostrando que os elementos de naturalização, inversão, velamento/ocultamento, justificativa e a apresentação do particular como universal também estão no centro da ideologia do racismo.

Para nós, a ideologia não é meramente um conjunto de ideias que conforma uma determinada visão de mundo. Também não compreendemos que existam dois conceitos de ideologia em Marx, isto é, um conceito restrito (negativo) e um conceito ampliado (positivo). Em nossa interpretação, que acompanha os trabalhos de IASI (2011; 2014; 2017) e NEVES (2016), entendemos que ideologia, tal como Marx e Engels escreveram n’A Ideologia Alemã, é sempre um conceito que expressa dominação de classe. Para melhor explicitar tal afirmação, avaliemos três pressupostos fundamentais presentes na obra fundante de Marx e Engels acerca da ideologia:
 a) é a base material da sociedade, constituída pelas relações sociais de produção e reprodução da vida, que se expressa idealmente em um conjunto de ideias, valores, juízos e representações de um tempo histórico, ou seja, não é possível entender a ideologia em si mesma, pois ela não é qualquer outra coisa que não seja a expressão das relações materiais;
 b) essa expressão ideal não é somente determinada pela base material, mas interage com todas as outras esferas da chamada superestrutura2, ressaltando a dimensão da totalidade, enquanto uma totalidade dinâmica de esferas – ou de complexos parciais – que interagem entre si. Assim, por exemplo, os aspectos jurídicos estão associados e são influenciados pelos aspectos políticos, da mesma forma que aspectos valorativos e morais estão articulados à filosofia e à arte, e todos juntos conformam um conjunto de complexos parciais – relativamente autônomos – que, em última instância, tem por base as determinações econômicas do complexo total, isto é, do momento predominante que acaba por se impor;

 c) e, por último, seria o que chamamos de “efeito de volta”, ou seja, a ação dessa expressão ideal incidindo sobre a materialidade. Isto confirma que aquilo que é determinado também pode determinar, sem que com isso deixe de ser determinado. Portanto, essa expressão ideal não é meramente um reflexo passivo, um epifenômeno acima da realidade; ela tem efetividade e age no real também, como força material. Portanto, para Marx:

A consciência (Bewusstein) não pode ser outra coisa do que o ser consciente (bewusste Sein), e o ser dos homens é o seu processo de vida real. Se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça pra baixo como numa câmara escura, esse fenômeno resulta do seu processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina resulta de seu processo de vida imediatamente físico (MARX, 2007, p.94, grifo nosso).

A partir desses elementos, afirmamos que ideologia em Marx não pode ser identificada apenas enquanto “falsa consciência”. Segundo Neves:

A ideologia é uma forma ontologicamente vigente da consciência, e, enquanto tal, conhecimentos – não necessariamente falsos – fazem parte de sua constituição. Vimos anteriormente que o conhecimento sobre o real é construído a partir do reflexo de suas determinações, de seus complexos, das relações entre eles, das leis de seu desenvolvimento, no plano do pensamento. As ideologias, portanto, mobilizam reflexos de determinações realmente presentes no real – quer queiram, quer não queiram seus formuladores. O problema com elas reside antes de mais nada no fato de que mistificam o real na medida em que mostram ocultando.É por isso que elas não podem ser simplesmente identificadas à “falsa consciência”, à mistificação pura e simples ou à mentira, apesar de poderem carregar elementos destas formas de objetivação do ser social (NEVES, 2016, p.306-307, grifo nosso).

A capacidade da ideologia de mostrar enquanto oculta e também de ocultar enquanto revela é muito mais sofisticada do que apenas uma falsidade, uma mentira vulgar ou ainda uma manipulação. Mais

à frente veremos essa questão de forma um pouco mais detalhada. Vejamos agora como Iasi sintetiza o conceito de ideologia em Marx:

•    Ideologia pressupõe uma relação de dominação, uma relação na qual a classe dominante expressa essa dominação em um conjunto de ideias;

•   Ideologia pressupõe inversão, velamento da realidade, naturalização das relações de dominação e, daí, sua justificação;

•   Ideologia pressupõe, finalmente, a apresentação de ideias e concepções de mundo particulares como sendo universais. (IASI, 2011, p.81).

Nessa síntese, nos salta aos olhos como a ideologia do racismo se encaixa didaticamente em todos os elementos elencados, sendo talvez um dos melhores exemplos para demonstrar as características gerais da ideologia. Dito isso, olhemos mais de perto agora para a ideologia do racismo.

As dimensões da ideologia do racismo enquanto conceito

Trabalharemos o conceito de ideologia do racismo basicamente em cinco dimensões, que se encontram diretamente relacionadas entre si: a) o pressuposto de uma divisão racial do trabalho; b) o racismo enquanto uma ideologia, isto é, uma expressão ideal dessa divisão; c) as formas ideológicas do racismo; d) o tratamento teórico-ideológico do racismo e, por fim, e) os ideólogos do racismo.

A ideologia é capaz de se entificar de diversas maneiras e não poderia ser diferente disso, pois, partindo do pressuposto de que ela é expressão ideal de uma determinada estrutura – que é, em si mesma, complexa e contraditória – aquilo que aparece no momento ideal, só poderia fazer isso se expressando das mais diferentes formas, como já é característico da própria superestrutura que, no mínimo, é política, jurídica e também ideológica. Assim, por exemplo, se em uma determinada estrutura econômica existe uma escravizante divisão racial do trabalho, na superestrutura irá se expressar o racismo enquanto uma ideologia, processo esse mediado pela moderna noção de raça, enquanto sistema classificatório e hierarquizador da humanidade.

Por isso, a ideologia é capaz de se metamorfosear no tempo e no espaço, justamente por conta dessa conexão com a realidade concreta que, por sua vez, está sempre em movimento. O racismo brasileiro não foi o mesmo da época da escravidão até os dias atuais de capitalismo dependente. Existem continuidades, claro, mas ao passo que o capitalismo se consolida, surgem diferenças fundamentais e, ao passo que ele se desenvolve, novas formas ideológicas aparecem. Frantz Fanon nos explica isso de maneira precisa:

Contudo, progressivamente, a evolução das técnicas de produção, a industrialização, alíás, limitada, dos países escravizados, a existência cada vez mais necessária de colaboradores, impõem ao ocupante uma nova atitude. A complexidade dos meios de produção, a evolução das relações econômicas, que, quer se queira quer não, arrasta consigo a das ideologias, desequilibram o sistema. O racismo vulgar na sua forma biológica corresponde ao período de exploração brutal dos braços e das pernas do homem. A perfeição dos meios de produção provoca fatalmente a camuflagem das técnicas de exploração do homem, logo das formas do racismo. (FANON, [1956] 2018, p.82).

Essa afirmação não nos deve fazer crer que iremos encontrar uma conexão imediata de cada ação humana ou produto ideológico com um movimento específico da estrutura econômica. Esse procedimento não seria algo diferente de um determinismo econômico mecânico e também vulgar. Diria Fanon:

Numa cultura com racismo, o racista é, pois, normal. A adequação das relações econômicas e da ideologia é, nele, perfeita. Certamente que a ideia que fazemos do homem nunca está totalmente dependente das relações econômicas, isto é, não o esqueçamos, das relações que existem histórica e geograficamente entre os homens e os grupos. (FANON, [1956] 2018, p.86).

Na mesma toada, dizia Engels:

Segundo a concepção materialista da história, o fator que, em última instância, determina a história é a produção e a reprodução da vida. Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais do que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o únicofato determinante, converte aquela frase vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levanta sobre ela – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as constituições que, uma vez vencida uma batalha, a classe triunfante redige, etc., as formas jurídicas, e inclusive os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos que nelas participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as ideias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se num sistema de dogmas – também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator predominante. Trata-se de um jogo recíproco de ações e reações entre todos esses fatores, no qual, através de toda uma infinita multidão de acasos (isto é, de coisas e acontecimentos cuja conexão interna é tão remota ou tão difícil de demonstrar que podemos considera-la inexistente ou subestimá-la), acaba sempre por impor-se, como necessidade, o movimento econômico. (ENGELS, [1890] s.d., p.284).

Justamente por isso, segue válida a afirmação geral de que é impossível compreender o momento ideal autonomizado (separado) de sua base material. Portanto, se queremos compreender a ideologia, precisaremos olhar também e, sobretudo, para a base material ou, em outras palavras, para a estrutura econômica.

De volta ao que nos cabe de maneira mais particular no presente artigo, utilizamos o conceito de ideologia do racismo, de uma maneira geral, entendendo o racismo enquanto ideologia, pois partimos do pressuposto de que o racismo é em sim mesmo uma ideologia, isto é, uma forma específica de dominação ideológica. Entretanto, a ideologia do racismo enquanto tal, assumiu ela mesma diversas formas ao longo da história: religiosa, biológica, “científica” bem como derivações e cruzamentos delas. Todas elas, a partir de suas peculiaridades, buscaram justificar, naturalizar, inverter ou ainda ocultar as reais motivações de determinadas decisões políticas e econômicas, que tinham (e ainda tem) por objetivo oprimir para melhor explorar a classe trabalhadora brasileira e, em especial, a sua parcela negra. Não pretendemos aprofundar no presente artigo acerca das mais variadas formas ideológicas do racismo. Nos interessa apenas saber que a ideologia do racismo se expressa de diferentes formas.

Para nós, o conceito de ideologia precisa estar conectado com a sua dimensão prática, objetiva, material e concreta da vida, como vimos. Porque é dessa dimensão que a ideologia emerge e, na maioria das vezes, é aonde ela retorna enquanto objetivo prático fim. Olhando um pouco mais de perto essa dimensão, logo perceberemos que precisa existir a figura do “ideólogo”, ou seja, aquele ou aquela que (re)produz, consciente ou inconscientemente, no campo ativo da produção de conhecimento e da batalha teórico-política das ideias, a ideologia. Marx e Engels, por exemplo, chamavam os continuadores de Hegel, velhos e jovens hegelianos, de idealistas, de “ideólogos”. A partir dessa particularidade da realidade alemã, vão buscar traçar características dos ideólogos em geral. Vejamos um pouco mais detalhadamente sobre isso:

Uma vez que as ideias dominantes são separadas dos indivíduos dominantes e, sobretudo, das relações que nascem de um dado estágio do modo de produção, e que disso resulta o fato de que na história as ideias sempre dominam, é muito fácil abstrair dessas diferentes ideias “a ideia” etc. como o dominante na história, concebendo com isso todos esses conceitos e ideias singulares como “autodeterminações” do conceito que se desenvolve na história. Assim o fez a filosofia especulativa. Ao final da Filosofia da História, o próprio Hegel assume que “considera somente o progresso do conceito” e que expôs na história a “verdadeira teodiceia”. Podemos, neste momento, retornar aos produtores “do conceito”, aos teóricos, ideólogos e filósofos, e então chegamos ao resultado de que os filósofos, os pensadores como tais, sempre dominaram na história – um resultado que, como vemos, também já foi proclamado por Hegel. [Grifos nossos] (MARX, 2007, p.49-50)

Para nós, fica nítido que os autores procuram chamar a atenção justamente para a ilusão de se buscar separar as ideias dominantes, ou a ideologia, dos indivíduos dominantes, ou da classe dominante – e, sobretudo – das relações que nascem de um dado estágio do modo de produção, já que a consciência não existe sem o ser consciente e a consciência do ser não pode ser algo diferente das relações materiais que ele estabelece na vida material. Tal procedimento de apartar as ideias do chão histórico que as sustentam, como se surgissem por conta própria (autodeterminadas) e ficassem simplesmente pairando no ar, é realizado pelos ideólogos em geral. Marx irá sintetizar afirmando que “todo o truque que consiste em demonstrar a supremacia do espírito na história [...] reduz-se aos três seguintes esforços.” (MARX, 2007, p.50):

Nº 1. Deve-se separar as ideias dos dominantes – que dominam por razões empíricas, sob condições empíricas e como indivíduos materiais – desses próprios dominantes e reconhecer, com isso, a dominação das ideias ou das ilusões na história. Nº 2. Deve-se colocar uma ordem nessa dominação das ideias, demonstrar uma conexão mística3 entre as ideias sucessivamente dominantes, o que pode ser levado a efeito concebendo-as como “autodeterminações do conceito” (o que é possível porque essas ideias, por meio de sua base empírica, estão realmente em conexão entre si e porque, concebidas como meras ideias, se tornam autodiferenciações, diferenças estabelecidas pelo pensamento). Nº 3. A fim de eliminar a aparência mística desse “conceito que se autodetermina”, desenvolve-se-o numa pessoa – “a autoconsciência” – ou, para parecer perfeitamente materialista, numa série de pessoas, que representam “o conceito” na história, nos “pensadores”, nos “filósofos”, nos ideólogos, concebidos como os fabricantes da história, como “o conselho dos guardiões”, como os dominantes. Com isso, eliminam-se da história todos os elementos materialistas e se pode, então, soltar tranquilamente as rédeas de seu corcel especulativo (MARX, 2007, p.50).

O debate da obra A Ideologia Alemã é um dos momentos fundantes da perspectiva materialista da história no método dialético incorporado criticamente por Marx e Engels a partir de Hegel, por isso o debate mais geral com as diferentes formas de idealismo. Dentre aqueles que operam através deste procedimento ideológico, Marx cita os produtores (ou representantes) “do conceito”; os teóricos; filósofos e pensadores, buscando aproximá-los de juristas; políticos; homens de Estado, práticos, como indivíduos em geral que acabam por autonomizar as diferentes esferas do momento ideal (ou da superestrutura política, jurídica e ideológica) da sua base material econômica.

No caso da ideologia do racismo, portanto, quem seriam os ideólogos? De antemão, alertamos: é preciso tomar cuidado para não confundir ideólogos do racismo com indivíduos racistas. Todo racista opera a partir da ideologia do racismo, mas nem todo ideólogo do racismo é um racista. Até mesmo um ativista, militante e/ou intelectual do movimento negro pode apresentar o racismo apartado de suas determinações materiais concretas. Nesse caso, ódio e medo racial, componentes essenciais da ideologia do racismo, podem aparecer autonomizados, tal como a substância original do próprio racismo. Como a pergunta do “por que odeiam inicialmente?” nunca é satisfatoriamente respondida, acaba por se naturalizar uma eterna ojeriza às diferenças humanas como se tal procedimento fosse parte do ser natural da humanidade. “Odeia o diferente porque o ser humano é assim mesmo”. Ao se fazer isso, normalmente se apresentam caminhos estratégicos de lutas antirracistas que não levam a estrutura, historicamente determinada, capitalista, em consideração. Proceder de tal maneira ideológica, ou, dito de outra forma, operar um tratamento teórico-ideológico do racismonão consiste necessariamente em uma postura racista.

Por outro lado, alguns outros tratamentos, ou formas teórico-ideológicas de apresentar o racismo, irão sim se configurar enquanto racismo explícito, reproduzindo as mais abjetas naturalizações, inversões e justificativas que, não só contribuem decisivamente para a manutenção do estado de coisas exatamente como se encontram, mas que entram no terreno da prática ofensiva, com a mira apontada na direção das pessoas negras, violentando, inferiorizando e, em última instância, buscando desumanizar ainda mais tais pessoas. A frenologia4 (uma das muitas formas da ideologia do racismo), por exemplo, era uma “ciência”, ou, um procedimento “científico” prático efetivamente racista. O teórico que se baseia na frenologia para fundamentar seus argumentos não é apenas um ideólogo do racismo, mas objetivamente um racista também. Assim como também seriam os teólogos que justificam a desigualdade racial como se essa fosse a “vontade de Deus”, expressa na Bíblia ou não; ou juristas que acreditam nas teorias da criminologia do italiano Cesare Lombroso, desenvolvida em terras brasileiras por Nina Rodrigues. Teóricos eugenistas, higienistas, meritocráticos etc. seriam exemplos de ideólogos do racismo que também são racistas.

Características gerais das ideologias e a ideologia do racismo

Não pretendemos reproduzir a polêmica de Marx contra Hegel, na particularidade do nosso tema, ou seja, usar a lógica (do racismo) para somente explicar a coisa da lógica, no caso, a lógica ideológica. Portanto, nosso objetivo é utilizar uma determinada perspectiva do conceito de ideologia, a marxiana, para buscar explicações mais profundas de como se expressa na consciência a ideologia do racismo, para assim melhor combatê-lo, em vias de superá-lo. E, nesse caso em particular, as duas coisas acabam acontecendo ao mesmo tempo. Tal interpretação da teoria marxiana da ideologia se apresenta como uma boa demonstração do que é o racismo, este, por sua vez, em nossa concepção, confirma a própria interpretação. Vejamos um pouco mais de perto esse processo, em que as dimensões da ideologia, a saber: inversão, velamento/ocultamento, naturalização, justificativa e a apresentação do particular como se fosse universal, serão por nós analisadas. Agora, iremos cruzar essas dimensões gerais da ideologia com a ideologia do racismo de forma sistematizada, fazendo algumas digressões ao longo do caminho.

Inversão: “Não foi a escravidão negra que criou o racismo, ao contrário, a escravidão foi negra por causa do racismo”

Essa é a principal e uma das mais polêmicas inversões expressas pela ideologia do racismo, isto é, aquela que afirma que o racismo antinegro, tal qual o conhecemos hoje, é anterior ao período da acumulação primitiva de capital, ao sistema colonial e a implementação da escravidão negra moderna (plantations). Em última instância, o racismo seria anterior à modernidade capitalista. Uma das principais autoridades no assunto é o trinitário tobagense Eric Williams. Segundo Carlos Moore, intelectual negro cubano radicado no Brasil desde 1998, “a rigorosa demonstração de Williams conduz a conclusões das quais dificilmente podemos escapar” (MOORE, 2007, p.136). Ainda para este autor, as teses de Eric Williams afirmariam o seguinte: “A busca de mão-de obra escravizada exclusivamente negra constitui uma decisão deliberada, de natureza especificamente raciológica. Tratou-se, consequentemente, de uma escravidão racial.” (MOORE, 2007, p.136). Aqui é preciso pontuar uma questão de diferença interpretativa. O final da frase é irrefutavelmente um fato: tratou-se de uma escravidão racial. Parece-nos que a questão reside no começo da afirmação. Aquela que diz que, em última instância, o que motivou a escravização exclusiva de pessoas negras foi uma decisão de natureza especificamente raciológica. Em outras palavras: foi o racismo que determinou que a escravidão fosse exclusiva ou majoritariamente negra. Passemos a palavra a Eric Williams e vejamos, então, quais foram as suas “inescapáveis conclusões”:

A escravidão no Caribe tem sido identificada com o negro de uma forma demasiada estreita. Com isso deu-se uma feição racial ao que é basicamente um fenômeno econômico. A escravidão não nasceu do racismo: pelo contrário, o racismo foi consequência da escravidão. O trabalho forçado no Novo Mundo foi vermelho, branco, preto e amarelo; católico, protestante e pagão. O primeiro caso de tráfico e trabalho escravos que se desenvolveu no Novo Mundo dizia respeito, em termos raciais, não ao negro, mas ao índio. (WILLIAMS, 2012, p.34-35).

Tal afirmação de Williams é anti-ideológica, no exato sentido em que desinverte uma noção ideologicamente invertida. Podemos afirmar, de antemão, que o racismo é uma prática social discriminatória, que tem por base a condição racial das pessoas e que só pode se materializar expressando a existência real de uma relação polarizada, de oposição, sinteticamente entre opressores e oprimidos; no caso, entre brancos e não-brancos, sobretudo negros. Portanto, uma relação de poder. Contudo, é preciso diferenciar o que aqui chamamos de racismo de outras possíveis formas de discriminação (como a xenofobia, por exemplo), ainda que em muitos casos, elas possam se combinar. É isso que nos permite afirmar que o racismo surge no processo de formação do capital e não antes. Segundo Silvio Luiz de Almeida:

Por certo o racismo, entendido de modo genérico e impreciso como discriminação de indivíduos pertencentes a grupos sociais, não é algo exclusivo do capitalismo. Porém, dar ao racismo um caráter eterno e universal apenas encobre o fato de que se faz referência a algo específico, integrado às práticas sociais deste tempo histórico e que se define segundo a lógica do capitalismo. (ALMEIDA, 2015, p.756).

Justamente por isso que afirmamos que o racismo é produto de uma base estrutural muito bem determinada, um modo de produção escravista organicamente vinculado com o desenvolvimento e amadurecimento do capital industrial no centro do mundo burguês. É esse processo que cria as bases para uma internacional divisão racial do trabalho, a base real sobre a qual se ergue o monumental edifício ideológico do racismo. Não foi qualquer escravidão que produziu esse cenário, mas a escravidão negra moderna. Para que esse debate seja feito de forma consequente, é preciso estudar a relação de continuidades e diferenças substanciais da escravidão negra moderna (plantations), que praticou uma escravidão exclusivamente negra em boa parte de sua existência, com as antigas formas de escravidão. Segundo Paul Lovejoy, uma das principais referências no assunto, é determinante compreender “a distinção entre escravidão como uma característica marginal da sociedade, a escravidão como uma instituição e a escravidão como um modo de produção” (LOVEJOY, 2002, p.42). Essa é a chave analítica central para detectar as bases ontológicas do racismo. Mesmo a escravidão antiga no mundo islâmico e o seu tráfico transaariano de escravizados negros, pioneiro nesse sentido, a partir do século VII, não poderia constituir as bases ontológicas do racismo tal qual o conhecemos hoje. As características da escravidão muçulmana eram completamente diferentes da escravidão americana moderna. Segundo o autor “na tradição islâmica, a escravidão era vista como um meio de converter os não-muçulmanos” (LOVEJOY, 2002, p.49). Vejamos mais alguns elementos:

Os cativos não eram necessariamente negros, embora os negros sempre constituíssem uma proporção significativa da população escrava. Eles também vinham da Europa Ocidental e das estepes do sul da Rússia. Eram muitas vezes prisioneiros de guerra, não-muçulmanos que tinham resistido à expansão do islamismo. A escravidão era concebida como uma espécie de aprendizagem religiosa para os pagãos. (LOVEJOY, 2002, p.47-48).

A escravidão no mundo islâmico, segundo o autor, representa a transição da escravidão como uma característica marginal das sociedades africanas para a escravidão como uma instituição. Para ele, a escravidão instituída após a invasão e vitória muçulmana em África é legatária da escravidão de parentesco, marginal, anteriormente existente na própria África. Contudo, mesmo essa escravidão enquanto uma instituição não pode ser comparada ao caso americano e seu tráfico do Atlântico, onde a escravidão negra foi normalmente o modo de produção. No caso islâmico, em primeiro lugar, ela não foi uma escravidão exclusivamente negra em nenhum momento dos seus quase mil anos (650-1600) de duração; segundo, pelas funções que os escravos cumpriam, ou seja, sendo muitas vezes tarefas domésticas, militares, comerciais e, por vezes, até com altos cargos no governo. Além do mais, por vários caminhos, seria possível que os escravizados fossem assimilados às estruturas das sociedades islâmicas, em que filhos de escravizados não nasciam enquanto escravos necessariamente. Por fim, a grandeza da quantidade de escravizados também foi completamente distinta, o que igualmente geraram distintas consequências qualitativas. Se o tráfico transaariano movimentou cerca de cinco milhões de pessoas escravizadas, negras e não-negras, ao longo de quase dez séculos, o tráfico do atlântico movimentou mais do que o dobro em menos da metade do tempo. Isto é, mais de onze milhões de pessoas exclusivamente negras, em basicamente quatro séculos, com a imperiosa função de trabalhar produtivamente nas plantations de monoculturas.Exatamente por isso:

O sistema de escravidão americano era único em dois aspectos: a manipulação da raça como um meio de controlar a população cativa e a dimensão da racionalização econômica do sistema. Nas Américas, o objetivo principal do trabalho escravo era a produção de mercadorias essenciais – açúcar, café, tabaco, arroz, algodão, ouro e prata
– para a venda nos mercados internacionais. (LOVEJOY, 2002, p.38).

É nesse sentido que os estudos de Marx sobre o sistema colonial e a assim chamada acumulação primitiva de capital, período histórico em que se constitui enquanto base ontológica do racismo, o levam a afirmar que:

A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e o saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva. A eles se segue imediatamente a guerra comercial entre as nações europeias, tendo o globo terrestre como palco. (MARX, 2013, p.821).

A questão é que o capital enquanto uma relação social econômica é violento desde suas origens, passando pela sua fase de desenvolvimento e consolidação até os dias de hoje. A violência é estrutural e estruturante desse sistema. Contudo, a primeira consideração a ser feita, é que isto não deve e nem pode nos impedir de retirar juízos morais condenatórios desse brutal e repugnante processo, pelo contrário; muito menos de que a escravidão da modernidade capitalista foi essencialmente negra e especialmente violenta. A segunda deve ser de ordem metodológica, sobretudo porque, uma vez estabelecida violentamente esta base, sobre ela se erguem ideias, valores e juízos, que formam e moldam a consciência de um tempo histórico. Como afirmou o caribenho trinitário-tobagense, “a escravidão criara a perniciosa tradição segundo a qual o trabalho braçal era o símbolo do escravo e a esfera de atividade do negro” (WILLIAMS, 2012, p.61). A relação entre escravidão negra moderna e racismo é sintetizada por Fanon:

O racismo entra pelos olhos dentro precisamente porque se insere num conjunto caracterizado: o da exploração desavergonhada de um grupo de homens por outro que chegou a um estádio de desenvolvimento técnico superior. É por isso que, na maioria das vezes, a opressão militar e económica [sic] precede, possibilita e legitima o racismo. (FANON, [1956] 2018, p.84).

A ideologia racista, que entrou pelos olhos, boca, ouvidos e emoções dentro, reconfigurando consciências, passa a atuar na vida concreta, passa também a determinar o movimento do real, ainda que sem deixar de ser determinada. Por isso, o estudo da questão racial é também central para a compreensão do movimento do real, pois as questões econômicas explicam a base, mas não a totalidade do processo, que passou a ser também racial.

Williams vai fazer importantes afirmações baseadas, sobretudo, nas teses de Marx acerca do período da acumulação primitiva e, ainda que este não seja citado diretamente no texto, a inspiração marxista das hipóteses de Williams são flagrantes e, “nisso reside uma das mais originais contribuições de Eric Williams e C.L.R. James”, como nos afirma Rafael de Bivar Marquese, um dos principais historiadores contemporâneos do Brasil colonial. No prefácio à edição brasileira do livro, ele diz: “com base na leitura de Marx, eles estiveram entre os primeiros historiadores a conectar a formação do capitalismo europeu à escravização em massa dos africanos do Novo Mundo.” E, ainda completa: “A escravidão negra, assim, foi alçada ao coração da gênese do mundo moderno.” (MARQUESE in WILLIAMS, 2012, p.21). Segundo Eric Williams, seu livro, que é fruto de sua tese de doutoramento de 1938 em Oxford, vai ter como objetivo “colocar em perspectiva histórica a relação entre o início do capitalismo, exemplificado pela Grã-Bretanha, e o tráfico negreiro, a escravidão negra e o comércio colonial geral dos séculos XVII e XVIII” (WILLIAMS, 2012, p.25). Além disso, vai afirmar que seu estudo “é, estritamente um estudo econômico do papel da escravidão negra e do tráfico negreiro como fornecedores do capital que financiou a Revolução Industrial na Inglaterra” (WILLIAMS, 2012, p. 26). Pois, como vinha nos afirmando Marx:

O sistema colonial amadureceu o comércio e a navegação como plantas num hibernáculo. As “sociedades Monopolia” (Lutero) foram alavancas poderosas da concentração de capital. Às manufaturas em ascensão, as colônias garantiam um mercado de escoamento e uma acumulação potenciada pelo monopólio do mercado. Os tesouros espoliados fora da Europa diretamente mediante o saqueio, a escravização e o latrocínio refluíam à metrópole e lá se transformavam em capital. (MARX, 2013, p.823).

A ideologia do racismo produz diversas outras inversões mais “prosaicas”, ainda que cruéis, entretanto didáticas para a compreensão do funcionamento ideológico do racismo. Uma bem simples é aquela em que os grupos de pessoas que foram histórica e sistematicamente violentados, sobretudo pelo Estado brasileiro, aparecem para nós no tempo presente, ideologicamente como aqueles que são os violentos por natureza, criminosos. Se algum de nós sentar ao seu lado no ônibus, troque de lugar, proteja sua bolsa. Se andarmos na mesma calçada, atravesse a rua. Se algum de nós entrar na sua loja, caso clássico, coloque o segurança (muitas vezes também negro) para vigiar e perseguir, sendo este um conhecido “procedimento padrão”, que também nos ajuda a pensar mais amplamente sobre o funcionamento das ideologias e a sua ação através do senso comum nas consciências. A associação invertidamente imediata entre pessoas negras e o perigo iminente foi construída ao longo de muito tempo, se tornando estrutural na nascente sociedade do capital.

Velamento/Ocultamento: “Não existe racismo no Brasil!”

O principal ocultamento expresso pela ideologia do racismo brasileiro é o que ficou conhecido como o mito da democracia racial, que oculta/vela o rígido sistema classificatório fenotípico brasileiro. Ocultar é mais sofisticado do que apenas omitir. A dimensão do ocultamento é a expressão mais bem acabada do processo de mostrar ocultando, já apresentada por nós. É neste sentido que o tal mito opera ideologicamente nas possibilidades de justificação das condições históricas e socioeconômicas da população negra, que até hoje se encontra na base da pirâmide social. Este mecanismo garante, em determinados momentos, o “imobilismo social resignado”, isto é, apassivando parcela significativa do segmento negro e da classe trabalhadora como um todo, garantindo melhores condições de reprodução do capital. Para a breve síntese que aqui apresentamos, basta-nos saber que o mito da democracia racial, por exemplo, ainda está também diretamente vinculado à necessidade de velamento das políticas de branqueamento da população brasileira, inclusive enquanto política de Estado.

Contudo, podemos apresentar outras importantes dimensões do processo ideológico de ocultamento protagonizadas pela ideologia do racismo. É determinante que tal ideologia apague (oculte/vele) os rastros do racismo, as suas pegadas, isto é, a base material a partir da qual ele emerge. No exato sentido de que o produto final (racismo) esconde o processo pelo qual ele foi produzido (acumulação primitiva de capital, sistema colonial e escravidão negra moderna e o capitalismo propriamente dito, industrial). Fazendo isso, torna-se possível apresentar o racismo como uma simples irracionalidade, como puro ódio, autonomizando o momento ideal e, sobretudo, abrindo margens para a caracterização eterna – para o passado e/ou para o futuro – desse particular e historicamente determinado fenômeno, naturalizando-o.

O médico Nina Rodrigues, um famoso eugenista, é um excelente exemplo da funcionalidade de se mostrar ocultando. Quando esse autor – diretamente influenciado pelas ideias do italiano Cesare Lombroso, criminalista e um dos pais do racismo “científico” no mundo – propõe um código penal diferenciado para os indígenas, negros e mestiços, o faz a partir do “elogio da diversidade”. No caso dos negros o faz, portanto, apresentando uma série de elementos culturais desse segmento, dentro de uma retórica geral, que o “autoriza” realizar a pergunta: como tratar igualmente o segmento negro já que é naturalmente inferior? Esse mecanismo de afirmar tal absurdo a partir da “revelação” de diversos elementos das culturas de matriz africana – que o autor foi ver de perto –, como diversas práticas do Candomblé, por exemplo, foi tão eficiente que até hoje, para alguns, Nina Rodrigues não deveria estar no panteão dos grandes nomes do racismo “científico” brasileiro, o que para nós não pode fazer qualquer sentido, a não ser no único possível, ou seja, no rigoroso sentido da eficiência da ideologia do racismo. O autor apresenta a especificidade das culturas negras não para revelar a beleza do diverso ou o violento processo de segregação racial, mas, pelo contrário, o faz para oculta-lo ainda mais e, por fim, para aprofunda-lo.

Poderíamos também citar o exemplo da Rede Globo que nos chama a atenção quando age explicitamente de maneira racista, seja nos seus telejornais, novelas ou programas, tanto quanto ou mais quando tenta fazer o elogio da diversidade e se apresentar como uma aliada na luta antirracista. Como no procedimento do mágico, que muitas vezes busca induzir nossa atenção para o que e onde ele quer, ocultando aquilo que é o essencial, fazendo a magia acontecer. Nesses momentos, os mecanismos da ideologia do racismo, alguns bastante sofisticados, seguem operando a todo vapor. Quando ela mostra alguns atores e atrizes negras ou apresentadores(as), o que ela está buscando ocultar? Que segue sendo parceira do latifúndio e do agronegócio brasileiro anti-quilombola, indígena e trabalhadores sem-terra? Ou que segue defendendo a privatização da educação pública ou do amoldamento do público aos interesses privados a partir de parcerias público-privadas, como o que acontece através do movimento “Todos pela educação” (uma Oscip), por exemplo? Ou a sua posição conservadora e reacionária em relação a guerra às drogas e a violência policial? Dinâmicas atravessadas pela ideologia do racismo que interferem diretamente na vida de milhões de negros e negras brasileiras. O elogio da diversidade por parte de inimigos históricos deve redobrar as nossas atenções. Dito isso, passemos agora ao aspecto justificativo.

Justificativa: “Racismo é desculpa, basta você se esforçar que você consegue”

A dimensão da justificativa, no caso da ideologia do racismo, talvez seja uma das mais importantes, porque em geral aparece como um dos objetivos fim de quase todas as outras dimensões. A comunicação que inverte, oculta e/ou naturaliza, normalmente o faz para justificar algo. No caso do racismo foi e é assim. De maneira geral, primeiro para justificar, nas mais variadas formas da ideologia do racismo, a escravidão durante quase quatro séculos, depois para justificar a pobreza, a violência letal do braço armado do Estado, as cadeias superlotadas, a abissal desigualdade sociorracial etc. no presente. Justamente por isso, muitas vezes as justificativas também aparecem como inversão, ocultamento e/ou naturalização.

Pegando a frase supracitada como exemplo, muito mobilizada no Brasil, o violento racismo causador das desigualdades sociorraciais, aparece invertidamente como uma simples desculpa (“mimimi”) mobilizada pelas pessoas negras, em tese, para justificar e ocultar os “verdadeiros fatos”, isto é, que as oportunidades existem e, claro, em condições de equidade para todos. Sendo assim, negros não obtêm sucesso em seus pleitos porque não querem e/ou porque não conseguem. A ideologia da meritocracia é uma das chaves para essa dimensão da justificativa e aqui, expressa todo seu conteúdo racista; pois, se é retirada da história a condição estrutural do negro brasileiro na sociedade capitalista, se apresentará uma falsa condição de igualdade (econômica e social) entre negros e brancos, ainda que juridicamente ela esteja “garantida”. Partindo do pressuposto de que uma condição de igualdade “substancial” estivesse dada, só sobrariam duas possibilidades lógicas: a) o negro só não consegue porque não quer; e, ideologicamente falando, não quer porque é naturalmente “preguiçoso”, “boêmio”, “malandro” etc.; b) ou só não consegue porque é “limitado” e, assim, a condição de “inferioridade” natural e/ou biológica do negro aparece justificada, pior, naturalizada, o que já nos remete ao próximo ponto. Antes, podemos citar um exemplo palpável dessa dimensão de justificação, que é a “guerra ao tráfico” e a noção de “bandido bom é bandido morto”, que estão articuladas.

A guerra às drogas, na verdade, nada mais é do que um velamento da guerra permanente à pobreza e à negritude, a serviço de uma gigantesca engrenagem de valorização de valor e também de objetivos políticos históricos, de manutenção dessa população marginalizada e acuada, o máximo que seja possível. Ela é apresentada como solução à criminalidade que, por sua vez, é diretamente identificada com o corpo negro e todas as suas características fenotípicas em nosso país. Portanto, se morrem pretos em massa nessa guerra (ou se são encarcerados em massa), ela já está justificada, tendo em vista que “preto é tudo bandido” e “bandido bom é bandido morto”. Olhando com as lentes da ideologia, a “solução” bélica acaba sempre por se reinscrever e reaparecer, e de maneira sempre crescente, quando o “objetivo” não é alcançado, isto é, “acabar com a criminalidade” ou reduzi-la à níveis “razoáveis”. Diriam eles: “Não deu certo dessa vez, na próxima vamos com mais força ainda”. Sem as lentes da ideologia, essa “solução” é mais uma das causas do problema, que oculta os verdadeiros problemas do contexto, ou seja, ausência de política pública popular, abandono, miséria e a própria violência que deriva da violência estatal cotidiana. Mas está tudo justificado: “já que preto é tudo bandido e bandido bom é bandido morto. Logo, guerra aos bandidos”. Essa noção é tão fortemente enraizada em nossa sociedade que o massacre diário não gera qualquer nível de empatia (e não poderia ser diferente disso, num primeiro momento), ficando, de fato, naturalizado. A midiática “guerra às drogas” e o combate à criminalidade, ocultam por fim, a necessária guerra à farra burguesa, violenta, corrupta e desumanizante.

Naturalização: “Isso é coisa de preto”

Aqui, vemos a naturalização do próprio racismo como um todo, ou seja, da “inferioridade natural” do corpo negro, seja a partir de critérios: a) “científicos” e biológicos (frenologia , genética etc.) que já foram amplamente refutados pela ciência; b) critérios religiosos (desde uma interpretação bíblica de que África seria um continente amaldiçoado, passando pela imposição da cristianização dos povos negros e originários; também pela participação de católicos e protestantes no mercado e tráfico de escravos, até o combate atual às religiões de matriz africana como coisas do “demônio”); c) critérios culturais e estéticos (a partir da imposição do padrão de beleza branco, que considera todas as características fenotípicas e culturais dos povos negros enquanto feias, estranhas, exóticas, selvagens e etc.) e, sobretudo d) os critérios socioeconômicos (escolaridade baixa, salários inferiores, ausência em postos de chefia, relação com a criminalidade, moradia em favelas e periferias etc.). Para Terry Eagleton:

Althusser pode estar certo ao dizer que a ideologia é, antes de tudo, uma questão de “relações vivenciadas”, mas não existem tais relações que não envolvam tacitamente um conjunto de crenças e suposições, e essas próprias crenças e suposições podem estar abertas a juízos de verdadeiro e falso. Um racista é, em geral, alguém dominado pelo medo, pelo ódio e pela insegurança, e não uma pessoa que, imparcialmente, chegou a certos juízos intelectuais sobre outras raças, e mesmo que os seus sentimentos não sejam motivados por tais juízos, é provável que estejam profundamente entrelaçados a estes; e esses juízos – de que determinadas raças são inferiores a outras, por exemplo – são manifestamente falsos. (EAGLETON, 1997, p.32).

É interessante notar como vão surgir explicações que utilizam apenas algumas das expressões naturalizadas do racismo para explicar outras. Claro que uma influencia na outra, mas não poderiam responder tudo. A mais comum é a de que o negro é pobre porque tem baixa escolaridade, sugerindo que bastaria ele ter boa formação para garantir-lhe condições socioeconômicas equânimes e competir em condições de igualdade, o que não é necessariamente verdade, já que mesmo tendo formação no mesmo nível que um branco, quando ocupando os mesmos cargos, os salários de negros e negras, ainda assim, em média, são menores. Enfim, o ponto para nós é que estas são manifestações da divisão racial do trabalho que, por sua vez, é expressão de questões econômicas, em última instância – que se expressam ideologicamente como racismo e, como qualquer outra ideologia, na verdade, reafirmam a própria realidade invertida, mostrando e ocultando, ao mesmo tempo. Falamos isso porque não é mentira que o nosso índice de salário é bem inferior, tampouco que a nossa escolaridade é bem inferior; ou ainda que exista realmente um padrão de beleza imposto. São fatos. É assim que realmente vivemos, e, segundo Victor Neves:

Na base da modalidade de vida vigente na cotidianidade está o que Lukács ([1963] 1966, capítulo I) denominou o materialismo espontâneo, ou seja, um comportamento, um modo de pensar e de agir decorrente do fato de que a partir da experiência – não apenas da experiência individual, mas da experiência do ser social acumulada e transmitida por ensinamento, que se cristaliza sob a forma do senso comum – é possível deduzir certas relações primárias de causa e efeito e de existência ou não existência, de validade ou não validade, de correspondência ou não, num plano bem imediato, entre a experiência vivida e o conhecimento da realidade que se tem. (NEVES, 2016, p.317).

Além disso, todo e qualquer espaço de divulgação de ideias que seja dominado pela burguesia, sobretudo a escola e os meios de comunicação de massa, reforçarão de maneira sistemática e permanente o que já está expresso ideologicamente na consciência social de um tempo determinado. Vejamos como Marx versa sobre isso:

Ele [o trabalhador inglês] aprecia os preconceitos sociais, religiosos e nacionais contra os trabalhadores irlandeses. A sua atitude é muito parecida a dos 'brancos pobres' em relação aos negros nos antigos estados escravistas dos EUA. Este antagonismo é mantido vivo artificialmente, e é intensificado pela imprensa, o púlpito, os jornais cômicos, em resumo por todos os meios à disposição das classes dominantes. Este é o segredo da impotência da classe trabalhadora [...] É o segredo pelo qual a classe capitalista mantém seu poder. E essa classe é plenamente consciente disso. (MARX apud CALLINICOS, 2000, s.p.).

Aqui é importante ratificar um elemento chave para nossa abordagem: não adianta apenas trocar essa forma ideológica de contar a nossa história pela sua verdadeira e violenta história, (ainda que isso tenha papel determinante no processo de mudança5 que desejamos) é necessário mudar essa situação em sua própria base material. O que por vezes parece ficar esquecido, ou relativizado, é que esta base é capitalista, o que complexifica em outro nível a análise, sendo um aspecto mais do que determinante para a superação do racismo. Portanto é fundamental buscar na materialidade da história a essência mais profunda deste fenômeno racial que se expressa enquanto ideologia, para que assim ele possa ser melhor enfrentado, ou ainda, na direção correta, não apenas nas suas expressões ideais, verdadeiras ou falsas. Sobre a questão específica da verdade e falsidade na ideologia, vejamos os termos colocados por Terry Eagleton:

Em vez de menosprezar totalmente as questões epistemológicas, à maneira de Hirst, seria mais proveitoso refletir sobre a sugestão de que o discurso ideológico exibe, de modo típico, uma certa proporção entre proposições empíricas e aquilo que poderíamos grosseiramente denominar “visão de mundo”, na qual a última leva uma ligeira vantagem sobre as primeiras; (EAGLETON, 1997, p.33).

Para explicar seu ponto, o autor faz uma analogia com obras literárias, que contêm proposições empíricas; entretanto, a “ficcionalidade” da obra:

Quer dizer, em partes, que essas declarações são introduzidas, em geral, não pelo valor que tem, funcionando, na verdade, como “suportes” para a visão global de mundo do próprio texto. E a maneira como essas afirmações empíricas são selecionadas e empregadas é determinada, de modo geral, por esse requisito. Em outras palavras, a linguagem “constativa” está atrelada a objetivos “performativos”; as verdades empíricas são organizadas como componentes de uma retórica global. Se essa retórica assim o exigir, uma verdade empírica particular poderá ser convertida em falsidade. (EAGLETON, 1997, p.33).

Aqui, as verdades empíricas da condição do negro na nossa sociedade são sistematicamente utilizadas dentro de uma retórica global que ignora a história, convertendo tais verdades em falsidade, ocultando elementos, justificando e naturalizando outros. Por isso, mais uma vez, dizemos que a ideologia mostra ocultando. Eagleton nos apresenta um exemplo em que fica evidente a forma como esses elementos aparecem em uma discussão e o como a ideologia opera nesse momento. Vejamos:

Um racista que acredite que os asiáticos na Grã-Bretanha serão mais numerosos que os brancos por volta de 1995 pode muito bem ser dissuadido de seu racismo quando se mostra a ele que essa suposição é empiricamente falsa, já que é provável que a proposição seja mais um suporte para o seu racismo do que uma razão para este. Se a afirmação é refutada ele pode simplesmente modifica-la, ou substituí-la por outra, verdadeira ou falsa. (EAGLETON, 1997, p.33).

Pensemos, por exemplo, quando alguém afirma que “cotista é tudo burro”, ou que diga que cotistas anteriormente não passavam no (elitista) vestibular simplesmente porque eram preguiçosos e não queriam estudar. Dito isso, provavelmente desdobraria a afirmação, colocando que “os cotistas terão, necessariamente, rendimento baixo, porque só querem regalias, só sabem ‘sugar’ o Estado” etc.; e, mesmo que se prove empiricamente para essa pessoa racista que, em muitos casos, as notas de cotistas são superiores às notas dos não-cotistas, ele irá mobilizar qualquer outro elemento, verdadeiro ou falso, pra sustentar, dentro de uma retórica global, sua “visão de mundo” racista, sustentando uma rígida posição contrária às cotas raciais, por exemplo.

Apresentar o particular como se fosse universal: “O mundo sempre foi racista, logo sempre será”

O racismo, que é um fenômeno histórico-particular, é apresentado como eterno-universal. O racismo é um fenômeno produzido pela modernidade capitalista, tendo no processo da acumulação primitiva, sobretudo e mais diretamente a partir do sistema colonial e da implementação da escravidão negra enquanto modo de produção nas Américas, como já vimos, seu momento de gênese ontológica. Podemos desdobrar dessa afirmação duas constatações que são fundamentais para o nosso tema:

a) o racismo está na base de formação dessa nova sociabilidade que surge, o capitalismo, e isso implica dizer que ele vai determinar uma divisão racial do trabalho, que não deixa de ser uma continuidade da divisão racial do trabalho que já existia no momento anterior (escravidão), entendido globalmente como o processo da assim chamada acumulação primitiva de capital e, como parte desse processo geral, em nossa particularidade brasileira, o que podemos chamar de escravismo colonial, que já nasce articulado e orientado para esse processo global, a fase que antecede historicamente ao capitalismo propriamente dito, isto é, o capitalismo industrial. No caso brasileiro, na passagem do escravismo colonial para o capitalismo dependente, o racismo realiza um salto de qualidade, condicionando estruturalmente a forma pela qual o segmento negro da sociedade vai se situar e ser visto na sociedade do capital. Por isso, segundo

Clóvis Moura: “o racismo brasileiro, como vemos, na sua estratégia e nas suas táticas, age sem demonstrar a sua rigidez, não aparece à luz, é ambíguo, meloso, pegajoso, mas altamente eficiente nos seus objetivos”

(MOURA, 2014, p.219). Dito isso, afirmamos que o racismo é estrutural e estruturante nessa sociabilidade.

b)  o que nos leva diretamente para a segunda constatação, ou seja, de que o racismo é funcional a esta ordem, a esta forma historicamente particular de produzir a vida: a forma capitalista. Sua funcionalidade, então, está diretamente vinculada à dimensão econômico-estrutural desta sociedade. Como nos afirma Clóvis Moura:

Podemos dizer que os problemas de raça e classe se imbricam nesse processo de competição do Negro, pois o interesse das classes dominantes é vê-lo marginalizado para baixar os salários dos trabalhadores no seu conjunto. (MOURA, 2014, p.219)

Podemos ver também sobre esse tema através das reflexões da importante intelectual negra brasileira Lélia Gonzalez (1979). Para a pensadora, em um texto sobre juventude negra e desemprego:

O privilégio racial é uma característica marcante da sociedade brasileira, uma vez que o grupo branco é o grande beneficiário da exploração, especialmente da população negra. E não estamos nos referindo apenas ao capitalismo branco, mas também aos brancos sem propriedade dos meios de produção que recebem seus dividendos do racismo. Quando se trata de competir para o preenchimento de posições que implicam em recompensas materiais ou simbólicas, mesmo que os negros possuam a mesma capacitação, os resultados são sempre favoráveis aos competidores brancos. E isto ocorre em todos os níveis dos diferentes segmentos sociais. O que existe no Brasil, efetivamente, é uma divisão racial do trabalho. (GONZALEZ, 1979, p.2).

Ainda para a autora:

Três processos de acumulação qualitativamente distintos coexistem na formação econômica brasileira e dão a marca da sua complexidade: capital comercial, capital industrial competitivo e capital industrial monopolista. A presença desses três processos de acumulação, sob a hegemonia do capital monopolista, remete-nos ao fato de que o desenvolvimento desigual e combinado acaba por integrar momentos históricos diversos. Se colocamos a questão da funcionalidade da superpopulação relativa, constatamos que, no caso brasileiro, grande parte dela se torna supérflua e se constitui em uma massa marginalizada em face do processo hegemônico. Claro está que todas as questões relativas ao desemprego e ao subemprego incidem justamente sobre essa população. E, “coincidentemente”, os mais baixos níveis de participação na força de trabalho pertencem à população negra brasileira. [Grifo nosso] (GONZALEZ, 1979, p.1).

A necessidade de baixar os salários reais por parte da burguesia é permanente e, ter um artifício igualmente permanente (ou estrutural) para isso, é bastante funcional para ela, atuando, então, como uma das contra tendências à lei da queda tendencial da taxa de lucro. Segundo Iasi:

•  [...] A redução dos salários de maneira a compensar a queda da taxa de lucro com um aumento do mais-valor. Aqui operam desde as formas diretas até as formas mais sutis e muito eficientes de utilização funcional de discriminações, como as de gênero, de etnia, os relativos às regionalidades ou outras, para pagar menos a um ser humano do que a outro;

•   Formação de uma superpopulação relativa, literalmente dispor ao capital mais força de trabalho do que aquela que ele de fato irá usar, forçando os níveis salariais para baixo; [...] (IASI, 2017, p.80).

Nos dois itens apresentados, a população negra tem um dramático e importante “protagonismo”. A população negra lidera todos os índices de baixos salários; a mulher negra, em especial; ainda que o homem negro também tenha seu “destaque” por ser o principal alvo das forças policiais, militares e jurídicas do Estado; além disso, também temos a população negra liderando todos os índices de desempregados, sendo os negros, atualmente, mais de 63% deste total. Em tempos de crise do capital, esta necessidade se impõe impiedosamente. E aqui é importante apresentar uma ressalva:

Aquilo que os simples mortais identificam como crise nada mais é do que os sinais da saída da crise, isto é, a quebra catastrófica da economia destrói a capacidade instalada, joga milhões no desemprego, dessa maneira rebaixa salários, destrói mercadorias, provoca fusões, abre mercados e recompõe as taxas de lucro (IASI, 2017, p.67).

Como se pode observar, a ideologia do racismo é funcional na fase de “ida” (crescimento econômico) tanto quanto na fase de “volta” (recessão econômica e preparação para um novo ciclo de crescimento) da crise cíclica; seja como contra tendência da queda tendencial da taxa de lucro, garantindo as altas taxas de lucro e o “crescimento econômico”, seja como um dos pivôs dos processos de saída da crise (retirada de direitos historicamente conquistados, desemprego em massa, encarceramento em massa, violência generalizada, rebaixamento de salários etc.). Em todo o ciclo do capital, o segmento negro da sociedade é particularmente afetado, sendo a sua opressão uma determinante ferramenta de exploração da classe dominante burguesa.

A ideologia do branqueamento combinada com o mito da democracia racial constitui, por fim, uma singularidade da ideologia do racismo no Brasil. Portanto, se a ideologia pressupõe uma relação de dominação na qual a classe dominante expressa essa dominação em um conjunto de ideias, como nos afirmou Marx, a ideologia do racismo, em sua particularidade, também pressupõe uma relação de dominação, que se expressa em um conjunto de ideias que invertem, ocultam, justificam, naturalizam e ainda apresentam o particular como universal. Por isso, para Clóvis Moura, a ideologia do racismo “expressa, portanto, uma ideologia de dominação, e somente assim pode-se explicar a sua permanência como tendência de pensamento”. (MOURA, 1994, s.p.), enquanto capitalismo for. Nesse sentido, a máxima de Malcom X ganha contornos dramáticos tanto quanto precisos, incontornáveis, quando este afirma que não existe capitalismo sem racismo.

Sendo assim, para sermos consequentes com essa afirmação do revolucionário norte-americano, precisamos pensar, enquanto segmento negro e seus vários movimentos, os caminhos pelos quais combatemos, desde já, não somente o racismo, mas também o próprio capitalismo. Se assim for – e acreditamos que assim o é – qual seria a relevância da classe trabalhadora em seu conjunto na luta antirracista? Como articular metodológica e politicamente raça e classe? Qual seria a relevância das contribuições teórico-metodológicas e políticas de Marx e Engels e do campo marxista em geral, com seus erros e acertos, para a luta antirracista? Parece-nos que essas são perguntas chaves para os nossos tempos, ou seja, tempos de crise do capital, de avanços conservadores e de profundos ataques à classe trabalhadora brasileira em seu conjunto, que é majoritariamente composta pelo complexo racial negro. Em nossa opinião, tais perguntas devem orientar o cerne de nossas preocupações, sobretudo as estratégicas. Superar o racismo pressupõe destruir o capital, contudo, tal constatação não pode nem deve adiar a luta cotidiana antirracista.

Conclusão

Compreendemos o racismo nessas duas dimensões (sua materialidade histórica e sua manifestação ou expressão ideal) justamente por entendê-lo enquanto uma ideologia, partindo do pressuposto de que a ideologia é uma expressão ideal de uma determinada base material de dominação. Por isso, para destrinchá-lo, é preciso conhecer, por um lado, as suas bases ontológicas e, a partir daí, pelo outro, encontrar os ecos, reflexos, nexos e expressões ideológicas que, uma vez mobilizadas praticamente – seja no campo da linguagem, do direito, da cultura e, sobretudo, na sua inseparável relação com a economia –, ganham concretude funcional, isto é, a prova empírica da dimensão estrutural do racismo no funcionamento e organização da sociedade capitalista dependente brasileira. Isso chamaremos de ideologia do racismo.

A função primordial da ideologia do racismo é buscar apagar seus rastros históricos (fenômeno conhecido por nós como “mito da democracia racial”), mas, principalmente, os rastros contemporâneos e, nesse sentido, mais exatamente as suas mediações práticas, sobretudo no que tange a sua funcionalidade no processo de valorização de valor, eixo econômico central do modo de produção capitalista. Para fazer isso, a ideologia do racismo precisará inverter, ocultar, justificar, naturalizar e apresentar o particular enquanto universal.

Ao realizarmos apenas uma leitura que enfatiza as continuidades do passado para o presente, sintetizada dentro de uma ideia de "herança escravista" que, por óbvio, existe, entretanto, corremos o risco de ficarmos presos no momento ideal particularmente moralizante, tomando o ódio e o medo não só como os elementos fundantes do racismo, mas também por protagonistas da permanência dele até os dias de hoje. Ou seja, aquilo que na prática cotidiana é altamente eficiente para a virtuosidade do ciclo do capital fica nublado, quase desaparece, e aparece apenas enquanto ojeriza naturalizada à classe trabalhadora, especialmente ao seu complexo racial negro, por parte da classe dominante, com rebatimentos inclusive dentro da própria classe trabalhadora. Sobre este último fato, ele é apenas mais uma prova empírica da qualidade estrutural do racismo nesta sociedade.

Sabemos que as ideias da classe dominante são as ideias dominantes de uma determinada época histórica e que tais ideias serão compartilhadas pelo conjunto da sociedade. Entretanto, tal ojeriza, uma ideia, ou melhor, uma postura diante de um determinado contexto social, um juízo de valor sobre algo ou alguém, não pode ser explicada por ela mesma. Fazer isso pode significar trilhar um caminho que acaba desembocando em determinismos e generalizações perigosas, encontrando explicações que acabam por reforçar caminhos da própria ideologia do racismo que, por exemplo, buscou e ainda busca mobilizar argumentos biológicos, religiosos, culturais, climáticos e naturais, para justificar o injustificável. Por que odeia? Por que tem medo? Por que tem nojo?

Encontrar os nexos causais da ideologia do racismo é, portanto, necessário. Por isso, nos parece primordial lançar mão de procedimentos anti-ideológicos que sejam capazes de produzir respostas que desvelem, desinvertam, desnaturalizem aquilo que a ideologia do racismo busca apresentar enquanto fato pronto e acabado, justificado. Essa tarefa, em partes, é do campo da crítica.

Por isso, não podemos parar a análise na detecção e denúncia do discurso racista que falseia a realidade, nem daquele discurso que, cinicamente, é capaz de mobilizar fragmentos de verdades inseridos em retóricas globais que ocultam enquanto mostram, reafirmando, por fim, visões de mundo aderentes com a manutenção da ordem das coisas exatamente como estão.

Devemos aprofundar o momento analítico até as determinações históricas e materiais do fenômeno, desvelando as mediações práticas e ideais que permitem que o racismo se expresse enquanto uma ideologia de dominação racial à serviço da manutenção e aprofundamento da dominação de classe – justamente porque a questão não é apenas moral e cultural, ainda que seja também. A dominação racial não pode aparecer autonomizada dessa particular divisão social do trabalho – isto é, uma divisão racial do trabalho – e dos interesses antagônicos gerados por tal divisão, nem no seu passado escravista, tampouco no seu presente propriamente capitalista.

O medo, o ódio, o nojo e a ojeriza que acabam por se espraiar e passam a fazer parte da tradição, dos hábitos, dos costumes, ou seja, do senso comum de um determinado momento histórico – ou ainda, da primeira forma da consciência – estão muito bem fundamentados em particulares interesses econômicos, que precisam aparecer, ideologicamente, enquanto interesses gerais. É importante ressaltar que, do ponto de vista particular do complexo racial negro, em geral, os elementos que irão compor a sua subjetividade são a culpa, o auto ódio, a vergonha e a sensação de inferioridade, dentro de uma dinâmica de busca por identificar-se com aquilo que lhe é apresentado/imposto pela sociedade capitalista enquanto padrão, norma e regra, ou seja, o branco.

Por isso, a opressão não pode aparecer desconectada da exploração, ou seja, a prática da opressão está a serviço da exploração. Oprimir para melhor explorar. A questão é de como extrair mais mais-valia de trabalhadoras e trabalhadores em seu conjunto, de brancos e negros. A justificativa ideológica que permite explorar mais o complexo racial negro, rebaixando seus salários (ou os mantendo na informalidade, marginalidade, cadeia ou vala), permite, ao mesmo tempo, explorar mais o complexo total de trabalhadores e trabalhadoras, rebaixando os salários em seu conjunto. Além de fazer parte do mecanismo de funcionamento político que contribui decisivamente para manter a classe trabalhadora separada, dividida, em grupos que aparentemente são politicamente divergentes e, muitas vezes, colocados como inimigos. Segundo Marx, “este é o segredo da classe dominante”, retomando o pensamento clássico daqueles que pensaram a arte da guerra: “dividir para conquistar”.

Nesse sentido nossa crítica à ideologia do racismo nos conduz para a inequívoca necessidade de superação das bases materiais que permitem que tais expressões ideológicas se manifestem e operem eficientemente, do ponto de vista prático, no movimento do real. Em poucas palavras, diríamos: é preciso superar a burguesia e o capitalismo para superar o racismo. Do ponto de vista da luta política organizada é importante afirmar: não parece fazer qualquer sentido existir uma ordem cronológica nessa afirmação, ou seja, são processos concomitantes.

Quem é o sujeito dessa operação política? A raça! Mas o que seria a raça – uma invenção da modernidade – se não a própria classe, em sua dimensão mais afetada pelos efeitos destruidores e desumanizantes do capital? Por isso, o sujeito é a classe! Sim, a classe, que é a própria raça, com a sutil diferença de abrigar no seu interior mais alguns outros complexos parciais, ou ainda, falando de outro jeito, mais um punhado de outros punhos cerrados, de oprimidos e explorados, de oprimidas e exploradas, isto é, de camaradas, em luta, conscientes da difícil tarefa de destruição do capitalismo. Esse tipo de relação, inclusiva e não hierárquica, de raça e classe, chamaremos de raça em classes6.

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MOURA, C. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Fundação Maurício Grabois co-edição com Anita Garibaldi, 2014.

MOURA, C. O racismo como arma ideológica de dominação. Revista Princípios, São Paulo, Edição 34, AGO/SET/OUT, p. 28-38, 1994.

NEVES, V. Democracia e Revolução: um estudo do pensamento político de Carlos Nelson Coutinho. 2016. Orientador: Mauro Iasi. 745. Tese de doutorado – ESS/UFRJ. Rio de Janeiro, 2016.

WILLIAMS, E. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Notas

1  Doutorando em Serviço Social/UFRJ. Professor do Instituto Federal Fluminense – Campus Avançado Cambuci. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5344193340026222 . Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8266-5695 . E-mail: rianrodriguesiff@gmail.com .

2 “A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência”

(MARX, 2008, p.47).

3 “Esse método histórico, que com razão reinou principalmente na Alemanha, tem de ser desenvolvido a partir da conexão com a ilusão dos ideólogos em geral, por exemplo, com as ilusões dos juristas, dos políticos (e também, entre eles, os homens de Estado práticos), a partir das quimeras dogmáticas e das distorções desses sujeitos, o que se explica de modo bem simples a partir de sua posição prática na vida, de seus negócios e da divisão do trabalho).”

[Anotações de Marx] (MARX, 2007, p.50, n.d).

4 Que teve como precursor o médico austríaco Franz Joseph Gall (1758-1828). Estudioso do cérebro humano, sendo pioneiro no estudo das funções encefálicas, através do “desdobramento” de suas circunvoluções. Tal estudo se desdobra, também, para a “compreensão” do caráter e personalidade das pessoas a partir do formato detalhado do cérebro. Segundo Weber Lopes Góes: “A tese dos partidários da Frenologia era comprovar a ‘inferioridade’ dos povos não brancos; nesse caso, os negros, indígenas, asiáticos e até mesmo europeus da região sul” (GÓES, 2018, p.32).

5 Por isso que o materialista “Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.” (BENJAMIN, 1987, p.225).

6 “Raça em classe” é uma chave analítica, ainda no prelo, que buscará apresentar uma particular interpretação das relações de raça e de classe, tentando contribuir na difícil tarefa de mediá-las de forma indissociável, entretanto, sem que se desconsidere que existe aí uma relação inclusiva, de determinação e centralidade. Inclusiva nos marcos dos complexos de complexos, portanto, do ponto de vista metodológico, nunca uma relação de “hierarquia” que, em nossa opinião, acaba por moralizar o debate, abrindo espaço para interpretações que acabam “secundarizando” aspectos da realidade tão centrais quanto a contradição central capital x trabalho. Pretendemos apresentar em breve este caminho.

Publicado originalmente em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/49510

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