Os perigos da nova lei orgânica da Polícia Militar para a democracia
Almir Felitte, especial para a Ponte Jornalismo
O debate sobre a nova Lei Orgânica da PM foi amplamente negligenciado pelos setores mais progressistas do país e segue avançando sem qualquer chance de debate público
No apagar das luzes do governo Bolsonaro, em dezembro de 2022, a toque de caixa, a Câmara dos Deputados resolveu passar adiante mais uma das tantas bombas antidemocráticas que temos enfrentado: o Projeto de Lei para a nova Lei Orgânica das Polícias Militares foi aprovado e seguiu para o Senado, sem qualquer tipo de debate público.
A coisa poderia ter sido pior, é verdade. Não fossem algumas denúncias da imprensa no ano passado, propostas ainda mais estapafúrdias, como a criação de um cargo de General de PM e a proibição de que governadores pudessem demitir os Comandantes das PMs na vigência de um mandato, teriam sido aprovadas. Isso não significa que o projeto atual tenha ficado livre de riscos, como falaremos a seguir.
O aspecto mais problemático do PL 3.045/2022, agora em trâmite no Senado, diz respeito aos mecanismos e às formas de controle externo sobre as Polícias e os Bombeiros Militares Estaduais, bem como a total falta de participação popular em sua administração e fiscalização. O PL não só reforça a costumeira aversão militar ao controle externo, como reduz o poder e a independência de mecanismos já existentes, reforçando uma autonomia policial incondizente com preceitos democráticos.
Vale lembrar que, atualmente, existem três principais mecanismos de controle sobre a atividade policial no país: as Corregedorias, de caráter interno; o Ministério Público, de caráter externo e previsão constitucional; e as Ouvidorias, geralmente externas, mas sem poder disciplinar.
No art. 5º, XIX do PL, por exemplo, reforça-se a exclusividade das próprias instituições policiais no exercício do poder disciplinar administrativo sobre seus membros. Em outras palavras: minar qualquer possibilidade de externalização de suas respectivas Corregedorias. Já em seu artigo 10, §8º, o PL fragiliza ainda mais a situação das Ouvidorias que, além de não contarem com poder disciplinar, ficariam, agora, obrigatoriamente subordinadas ao Comando-Geral das respectivas polícias e bombeiros militares.
Nesse sentido, seria interessante não apenas combater um retrocesso das Ouvidorias, mas também buscar uma postura propositiva com o objetivo de aumentar o controle civil sobre a atividade das Polícias Militares. Resgatar um instituto já criado em outro âmbito poderia ser um caminho, como aquele previsto no art. 13, § 1º do Estatuto Geral das Guardas Municipais, que possibilita a criação de órgãos colegiados para o controle de atividades de segurança.
Várias mudanças poderiam ser pensadas neste compasso, como a criação de um novo órgão de controle externo com participação social, a ampliação dos poderes das já existentes Ouvidorias, a externalização das Corregedorias ou, finalmente, a implementação dos Mecanismos Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura. Qualquer um destes caminhos serviria para a ampliação do controle externo e da participação popular nas PMs e nos BMs. Mas o PL, infelizmente, vai na contramão deste caminho.
Outro ponto que, apesar de não parecer à primeira vista, pode dificultar o controle externo das PMs e BMs, está no art. 18, XI, do PL, que garante a assistência jurídica aos policiais acusados de praticarem infrações. Este dispositivo, inicialmente, tem alto grau de obscuridade, na medida em que deixa ao arbítrio de cada estado a maneira pela qual se daria esta assistência jurídica, levantando a dúvida: qual órgão público seria responsável pela mesma?
O Ministério Público, que é também o responsável constitucional pelo controle externo das polícias? A Defensoria Pública, que, no cotidiano forense, muitas vezes representa um polo contrário ao das polícias? Ou a Procuradoria Geral do Estado, que teria de passar a agir como “advogada” de servidores, mesmo que contra os interesses da própria Administração Pública?
Em suma, este dispositivo poderia se tornar altamente problemático, pois, a depender da escolha de cada ente federado, criaria um intenso conflito de interesses nestes órgãos públicos.
Outro ponto que deveríamos debater nesta questão é o do Ministério Público. Segundo o artigo 129, VII, da Constituição Federal, é função institucional do Ministério Público exercer o controle externo da atividade policial. Em suas muitas lacunas, porém, o PL silencia sobre a submissão das PMs e BMs ao controle do MP, não trazendo qualquer novidade.
Nesse sentido, resgatar institutos discutidos no âmbito da ADPF 635, que tratou das operações policiais no Rio de Janeiro no período da pandemia, mostram-se interessantes. Seria interessante repetir este “chamamento à reponsabilidade” ao MP também no âmbito da legislação policial, regulando de forma mais específica e definida o controle externo ao qual as polícias estaduais devem se submeter.
Ainda na esteia da inspiração na ADPF 635, poderíamos propor a inclusão, no art. 29, § 2º do PL, a previsão para que o comandante-geral da PM apresente, em até 60 dias da posse, um plano de metas para a redução de mortes decorrentes de intervenção policial.
Outro ponto negligenciado pelo PL diz respeito à formação policial. Vale lembrar que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) prevê que o ensino militar deve ser regulado por lei específica, não se submetendo aos desígnios civis. Em outras palavras, o ensino militar, sobretudo nas Academias e Cursos de Formação de Oficiais, se torna bastante impermeável ao controle e à participação da sociedade civil.
A revogação deste dispositivo através da Lei Orgânica possibilitaria maior entrada de movimentos da sociedade civil na administração e no planejamento dos projetos pedagógicos e curriculares das instituições de ensino ligadas às PMs e aos BMs, sendo, também, uma forma de controle externo sobre os seus métodos de educação e ensino. Esta participação poderia, inclusive, ter sua regulação incluída no PL em questão.
Outro ponto central do PL é a manutenção e o reforço da competência da Polícia Militar para exercer ações de inteligência e contrainteligência, em uma clara continuidade das atividades de policiamento político atribuídas à instituição nos tempos da Ditadura Civil-Militar. Um traço desta continuidade é a manutenção e o reforço da IGPM/BM, órgão integrante do Comando do Exército que exerce funções de controle sobre as polícias e os bombeiros estaduais.
Vale lembrar, também, que o PL não revoga o famoso “R-200”, regimento das Polícias Militares instituído pelo Decreto 88.777/1983, o qual, entre tantas outras subordinações ao Exército, regula que “as Polícias Militares integrarão o Sistema de Informações do Exército”.
Segundo apontado pela Comissão Estadual da Verdade de São Paulo, isto significa a subordinação das “P-2”, sistemas de inteligência das Polícias Militares estaduais, diretamente aos Comandos do Exército Nacional, o que poderia representar não apenas uma continuidade do policiamento político-repressivo da Ditadura Civil-Militar, mas até mesmo uma quebra do próprio pacto federativo.
Nesse sentido, aliás, outro ponto do PL também chama a atenção: a criação de um Conselho Nacional de Comandantes-Generais de Polícia Militar. Este dispositivo, ainda que sujeito à regulação posterior pelo Poder Executivo, passa grande obscuridade. Não está claro qual o interesse do legislador em criar tal Conselho, vez que a União já conta com aparelho de integração recém-criado para estes fins através do SUSP (Sistema Único de Segurança Pública), o qual, aliás, é basicamente ignorado pelo PL em questão.
Novamente, esta tentativa de elevar a concentração do poder militar estadual a um âmbito nacional não só poderia representar a quebra do pacto federativo, como, ainda, remonta a processos históricos de concentração de poder policial que serviram de mecanismo repressivo para períodos autocráticos no Brasil e no mundo, como no Brasil da Era Vargas ou na própria Alemanha nazifascista. Sem objetivos claros, este dispositivo pode se tornar um risco posterior à democracia.
Por fim, o PL em questão parece negligenciar completamente os atuais debates sobre a democratização e a valorização da carreira policial no país. Ainda que crie o QOE (Quadro de Oficiais Especialistas) para permitir que praças cheguem ao posto de oficialato, o PL não implanta a carreira única, tão demandada pelos trabalhadores das patentes mais baixas das polícias estaduais.
Ao contrário, o PL mantém a “porta de entrada lateral” para as polícias através das Academias de Formação de Oficiais, e impõe que mesmo o reduzido número de praças que poderia chegar ao oficialato não possa ultrapassar a patente de Tenente-Coronel.
Outro ponto em aberto é a questão da participação feminina nas polícias. Isso porque o art. 15 do PL regula, “no mínimo, o preenchimento do percentual de 20%” das vagas para candidatas do sexo feminino. A maneira como este dispositivo está mal redigido, porém, pode fazer com que, na prática, o percentual de 20% de mulheres se torne um “teto”, e não um “piso”.
Tais questões apontadas acima são centrais para a democratização da carreira policial, o que, por sua vez, é central para a democratização da própria função que as instituições policiais cumprem perante a sociedade.
O debate sobre a nova Lei Orgânica da PM foi amplamente negligenciado pelos setores mais progressistas do país e segue avançando sem qualquer chance de debate público. Pelos corredores de Brasília, ouve-se que há um acordo por baixo dos panos entre as Polícias Militares e as Polícias Civis para que uma instituição não interfira na Lei Orgânica da outra. A informação é ainda mais preocupante quando se leva em conta que o relator do PL no Senado é o Delegado de Polícia Civil Fabiano Contarato (PT-ES / sen.fabianocontarato@senado.leg.br).
As movimentações no Ministério de Justiça e Segurança Pública também preocupam. Com poucas demonstrações de oposição ao projeto, o Ministério pode ainda se encontrar num movimento de imobilidade por conta da possível nomeação de Flávio Dino ao STF (Supremo Tribunal Federal), bem como de um possível desmembramento do Ministério. Um tempo que, a julgar pela velocidade com que o PL tem avançado nos últimos tempos, os setores progressistas podem não ter.
Jogar o holofote necessário neste debate é a principal tarefa destes setores para o momento. Parte da pressão já mostrou algum resultado, obrigando o Delegado Contarato a prometer uma audiência pública no Senado sobre este tema, mas não podemos parar aí. A violência policial tem dado claros indícios de que pode se tornar cada vez mais explosiva, e o golpismo policial também não fica atrás.
Negar a importância que este debate merece é negar tudo o que passamos em dezembro de 2022 e em 8 de janeiro de 2023, entre outros tantos absurdos. A luta contra o golpismo ainda está longe do fim. E o debate acerca de formas de manter o controle sobre as polícias é parte central dela.
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